sábado, 23 de outubro de 2010
Transmedia storytelling: uma desconstrução teórica
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Publicado por
Pedro Mourão
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CIÊNCIAS SOCIAIS,
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TEORIA
Entrevista com a socióloga Milly Buonanno
hoje um dos principais centros de pesquisa sobre televisão neste país. Milly começou sua carreira acadêmica pesquisando temas ligados à representação social da família e da mulher. No começo dos anos 1980, um trabalho sobre revistas femininas a levou ao campo de estudos da mídia, principalmente a televisão, no qual permanece desde então.
Autora de diversos livros, entre os quais se destaca La età della televisione (2006), Milly vê com ceticismo as pesquisas recentes a respeito das transformações sociais produzidas pelas tecnologias digitais. A pesquisadora questiona o entusiasmo de seus colegas com as novas mídias e diz que falta pensamento crítico sobre a "ecologia midiática" contemporânea. Atualmente, ela ministra cursos como professora associada do Departamento de Sociologia da Comunicação da Universidade de Florença. Uma das convidadas do V Seminário Internacional Obitel, promovido no início de agosto de 2010 na PUC-Rio pelo Globo Universidade e pelo Centro de Estudos de Telenovela da ECA-USP, ela fala nesta entrevista sobre sua preocupação com os novos mecanismos de controle e a fragmentação social que em sua opinião marcam a contemporaneidade.
Globo Universidade - Como você passou dos estudos de sociologia, sua primeira área de atuação, para os de mídia?
Milly Buonanno - Comecei trabalhando com sociologia da família e, dentro desse campo, quase imediatamente me interessei pelos estudos da mulher. Era o final dos 1970, começo dos 1980. Seguindo esse caminho, fiz uma pesquisa sobre revistas femininas e essa foi minha primeira incursão no campo da mídia. Meu interesse pelo estudo de famílias e mulheres se mantém, mas a partir dos anos 1980 me envolvi mais com mídia em geral. Meu interesse pela ficção televisiva só começou no meio desta década, em função de uma grande transformação pela qual o sistema televisivo italiano passou na época. O país estava na vanguarda das mudanças da TV na Europa, com o surgimento de várias emissoras privadas e a quebra do monopólio estatal. Essas emissoras começaram a importar um enorme volume de ficção de outros países, principalmente dos EUA, mas também muitas novelas da América Latina. Foi uma revolução cultural para o público italiano que não estava acostumado a assistir a muita ficção na TV.
GU - Qual era sua formação teórica?
MB - Estudava sociologia e antropologia, mas imediatamente fui capturada pelos Estudos Culturais. Primeiro, porque me interesso por cultura popular e, em segundo, porque os Estudos Culturais não são uma disciplina única, mas sim um campo meio misturado, e também gosto disso. Não sou ortodoxa. Fui uma das primeiras pesquisadoras de Estudos Culturais na Itália. Nos anos 1970, lecionava Estudos Orientais na Faculdade de Nápoles e havia uma colega, Lidia Curti [professora da Universidade de Nápoles], uma das principais vozes dos Estudos Culturais no mundo, que me apresentou a Larry Grossberg [professor e pensador norte-americano], até hoje um dos meus melhores amigos. Tive a oportunidade de trazer sua obra para a Itália.
GU - Quando começou a pesquisar televisão, você também trabalhou inicialmente com os temas da família e da mulher?
MB - Minha primeira pesquisa foi sobre a representação da identidade de gênero na TV, especialmente a das mulheres, e a segunda foi sobre a representação da família. Sempre tentei manter meu interesse original. Estou agora escrevendo um livro sobre mulheres jornalistas como correspondentes de guerra.
GU - O tema da representação das mulheres é particularmente relevante na Itália?
MB - Não. Mas eu não ligo. Como uma pioneira, acho que posso fazer algo útil. Tudo que é relacionado às mulheres não é particularmente apreciado na Itália, assim como tudo relacionado à ficção televisiva, mas é exatamente por isso que me interesso, pelo desafio de demonstrar que, apesar do preconceito, esses assuntos são realmente relevantes.
GU - A senhora liderou a criação, com Giovanni Bechelloni, em 1986, do Observatório de Ficção Televisiva na Itália. Qual foi o contexto da criação desse centro?
MB - Ele surgiu como consequência da relevância que a ficção televisiva começou a adquirir na Itália na época. A importação de seriados e novelas americanas para a Itália levantou muitas preocupações quanto à colonização cultural. As pessoas na indústria estavam interessadas na construção e manutenção da identidade nacional, contra o uso dos importados americanos, e apoiaram a criação do observatório. Hoje ele é sustentado não apenas pela TV pública, mas também pela televisão privada.
GU - Mas em seus escritos a senhora contesta essa visão da TV como meio de colonização cultural, não?
MB - Minha posição está hoje mudando, em função da nova ecologia da mídia, mas quando se trata da TV, apenas, mantenho minha convicção. Enfatizo na minha pesquisa outros papéis da TV. Para mim, a presença da ficção estrangeira é talvez um recurso de conhecimento do outro, uma forma das pessoas conhecerem outras culturas. Apesar disso, não excluo completamente a possibilidade de que seja um caminho para a colonização. É no novo ambiente midiático, porém, que vejo muito mais problemas. Tenho o sentimento de que o poder da indústria está aumentando, em vez de diminuir. É um pouco paradoxal, porque estamos numa situação em que celebramos o poder do consumidor, o que é verdade, mas esse poder vem acompanhado de um crescimento ainda maior do poder da indústria. Estamos cercados pela mídia. A indústria da mídia está em toda parte. Então, começo a pensar diferente. Estou convencida, como outros colegas, de que vivemos numa sociedade de controle e vigilância, e que estes são feitos pela mídia.
GU - O que a preocupa, então, não é o velho problema da homogeneização cultural.
MB - Não, nunca acreditei na homogeneização cultural. Está diante de nós o fato de que as pessoas são diferentes. Há diferenças regionais, nacionais, de idade, de gênero. Minha preocupação é que essas diferenças estão agora explodindo, no sentido de que estamos nos tornando muito heterogêneos. Um grau de homogeneidade é importante porque ajuda a manter a sociedade coesa. Precisamos de um bom equilíbrio entre homogeneidade e heterogeneidade. Estamos vendo o desaparecimento do sentido compartilhado da vida. Isso não é bom.
GU - Mas essa nova ecologia da mídia, como a senhora diz, não criou novas oportunidades para o estabelecimento de comunidades?
MB - Sim, mas não é o suficiente. Uma comunidade não pode se construir apenas em torno de um texto: eu gosto de Lost, você gosta de Lost, somos uma espécie de tribo. Uma comunidade de texto não é uma comunidade de fato, durável no tempo. Essas comunidades novas são muito voláteis.
GU - Nos anos 1990, a senhora fez pesquisas sobre o jornalismo e desenvolveu a ideia de que, na Itália, ele estava se tornando um gênero híbrido, entre a reportagem e a ficção. Como vê a situação hoje?
MB - Também quanto a isso estou mudando de opinião. Na época, pelo menos do meu ponto de vista, essa era uma tendência positiva na Itália. O jornalismo político italiano foi desde o início feito para a elite, talvez de qualidade, mas feito para poucos. Então, no início, a mistura com formas mais populares de entretenimento foi para mim uma mudança positiva, porque ajudava a tornar o jornalismo político mais acessível. Hoje, no entanto, as coisas estão mudando. O entretenimento está se tornando dominante na internet e na TV. Está invadindo a informação, a ficção e, para mim, o entretenimento se tornou o mais importante dos gêneros jornalísticos. Essa presença me preocupa. Já não me sinto tão a favor desta prática.
GU - Essa onipresença do entretenimento parece análoga à disseminação da mídia, de que você fala, e teria um sentido de controle social. As duas coisas estão ligadas, em sua opinião?
MB - Quando falo em controle, penso especialmente na mídia interativa. Quando acessa um site e fala dos seus gostos, você dá informações que são usadas pelo sistema, pela indústria, para customizar os serviços e traçar um perfil seu. Hoje somos monitorados pela tecnologia. Monitoram nosso movimento, nosso consumo, e usam essa informação. Pense no YouTube. Ao usá-lo você comunica seus dados. Sem estarmos conscientes, estamos nos tornando fornecedores de nossos dados para os donos da tecnologia.
GU - Em sua palestra, você criticou o entusiasmo dos acadêmicos com as novas tecnologias. Falta um pensamento crítico em relação a esses fenômenos?
MB - Não quero generalizar, obviamente não sou a única no mundo a pensar o que estou dizendo. Mas há algo que podemos chamar de espiral de silêncio. É uma teoria da socióloga Elisabeth Noelle-Neumann [cientista política alemã]. Ela diz que, se uma minoria fala muito alto, a maioria permanece silenciosa. Acho que isso está acontecendo.
GU - Como você vê a aproximação das figuras do pesquisador e do fã da cultura pop?
MB - Não gosto disso. Estamos tão favoráveis a todo tipo de figura híbrida, mas há identidades que precisam ser mantidas separadas. Óbvio que na minha vida pessoal eu posso ser uma fã da televisão, mas não publicamente, na minha produção profissional. Não é um bom serviço ao conhecimento, e talvez nem mesmo aos fãs.
GU - Quais questões da identidade italiana aparecem atualmente nas ficções televisivas? Há muita diferença em relação à época em que você começou suas pesquisas?
MB - Não muita. O campo de ficção televisiva na Itália tem uma forte continuidade. A tradição importa. A ficção televisiva italiana tem lidado muito com as raízes católicas da cultura nacional. Nos últimos 20 anos, a ficção produziu muitas minisséries biográficas sobre as grandes figuras do país, especialmente as do século XIX. São as histórias dos papas e dos santos, as raízes profundas da identidade italiana. Outros dois temas importantes são, de um lado, a família, e de outro a máfia. Na verdade, a máfia é o assunto mais popular na TV italiana. Nos últimos 20 anos, mais de cem ficções forma produzidas sobre este tema. Há uma romantização, especialmente da máfia da Sicília, a Cosa Nostra, ainda que o mafioso raramente seja o protagonista.
GU - Nos últimos anos houve na Itália algumas manifestações xenófobas. A imigração é um tema importante na TV?
MB - Essas manifestações são um fenômeno muito minoritário, mas muito enfatizado pela mídia. Eu diria que a Itália não é um país racista, sequer xenófobo. Isso está inscrito na história da Itália: sempre fomos um país que recebeu populações de outras partes. É um privilégio da nossa cultura. Estamos acostumados à diferença e ao outro. A ficção televisiva começa a representar a nova composição étnica da sociedade italiana, sempre enfatizando a nossa habilidade de receber os estranhos. Ela mostra a integração, o modo como os estrangeiros se integram à sociedade italiana. Isso acontece até nas ficções mais populares. Não é totalmente realista, mas também não tão distante do que acontece.
GU - Ao reforçar noções tradicionais sobre a identidade italiana, com essas minisséries sobre os heróis da pátria, por exemplo, a TV não contribui para posições nacionalistas e potencialmente xenófobas?
MB - Não, porque a noção tradicional do que significa ser italiano é de ser aberto. A Itália sempre foi um país aberto a novas culturas, somos a população europeia que mais consome literatura de outros países. Gostamos de estrangeiros, é uma característica positiva da sociedade italiana.
GU - Para concluir, queria pedir que você explicasse suas restrições ao conceito de transmedia storytelling.
MB – O transmedia storytelling é problemático a começar por sua própria noção. Esse conceito é muito abrangente, teve um grande impacto em nossa imaginação, mas permanece subteorizado. É uma espécie de rótulo de marketing, mas não um conceito. Minha impressão é que o transmedia storytelling na verdade não tem relação com a narrativa, parece que está mais relacionado com os videogames. Não gosto da ideia porque acho que é uma projeção para o futuro, não é algo que esteja acontecendo agora. Não há muitas evidências de que exista, e não está claro quais desejos, esperanças ou aspirações ele pode satisfazer. O que também me preocupa é que ela funciona como um fator de distinção cultural. É um elemento de fratura, divisão, entre os que têm e os que não têm dinheiro. Para botar em prática o transmedia storytelling, você precisa ter muito dinheiro, ser proprietário de plataformas integradas, atrair um público muito letrado tecnologicamente, pessoas com muito tempo para gastar se divertindo.
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