sábado, 29 de setembro de 2012

A Democracia como Valor - A Tópica de Carlos Nelson Coutinho.


A Democracia como Valor - A Tópica de Carlos Nelson Coutinho.
                                                                                         Ubiracy de Souza Braga*
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*Sociólogo (UFF), cientista político (UFRJ), doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).



            “Sem democracia não há socialismo, sem socialismo não há democracia”. Carlos Nelson Coutinho
                       
                     Impactou a Academia com seu célebre artigo publicado na RCB em 1979.
Carlos Nelson Coutinho, Itabuna, 28 de julho de 1943, Rio de Janeiro, 20 de setembro de 2012, fora um filósofo, teórico marxista brasileiro, cientista político, tradutor da obra de Antônio Gramsci, professor universitário, Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É também Editor das Obras de Antônio Gramsci (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 10 vols., 1999-2005). Militante do PCB - Partido Comunista do Brasil por muitos anos, desde a juventude, formou-se em filosofia na Universidade Federal da Bahia (UFBA), e se dedicou à crítica literária e cultural nos anos 1960 e 70. Foi militante do PSB, expressão do seu interesse pelo socialismo democrático, uma vez que o PSB de Carlos Nelson era aquele histórico, do pós-1945, marcado por figuras como Hermes Lima e João Mangabeira, do Partido dos Trabalhadores e do Partido Socialismo e Liberdade. Deixa um legado amplo e sui generis nas áreas de filosofia, crítica literária e, principalmente teoria política. É reconhecido internacionalmente, entre poucos, como um dos maiores especialistas no âmbito do pensamento social e político de Antônio Gramsci.
Em 1961, a revista Ângulos, editada pelo Centro Acadêmico Ruy Barbosa, da Faculdade de Direito da Universidade da Bahia, em seus números 16 e 17, publicou dois ensaios escritos por um jovem de dezessete anos chamado Carlos Nelson Coutinho. Desde então, esse ensaísta vem marcando presença, com crescente vigor, tanto na vida teórico-política como reflexão filosófica-cultural da e na sociedade brasileira. E de fato, faz-se interessante notar que, desde os primeiros passos no campo da reflexão analítica, que ele fazia uma clara opção pelos dois campos de trabalho aos quais haveria de se dedicar, ao longo das três décadas subsequentes. O artigo do n.º 16 de Ângulos se intitulava “O processo das contradições e a revolução brasileira”. E o artigo do n.º 17 estava dedicado à “Problemática atual da dialética”.
            Nos anos 1970, Carlos Nelson Coutinho (1967; 1968; 1972; 1973; 1974; 1979; 1981; 1984; 1985; 1986a; 1986b; 1987; 1996; 1997; 1998a; 1998b; 1999; 2000; 2003; 2004; 2011) conheceu o exílio em Bolonha - terra em que se afirmara por décadas o seu amado Partido Comunista Italiano - PCI, outra das referências político-intelectuais imprescindíveis para entender o nosso autor - e, posteriormente, em Paris. Foi membro eminente do “grupo de Armênio Guedes”, que, dentro do PCB, buscava a renovação do nosso comunismo a partir da questão democrática, vista - a democracia - também como a alternativa mais produtiva aos caminhos e descaminhos da modernização “prussiana” do capitalismo brasileiro, que havia conhecido um novo impulso a partir da ditadura implantada com o golpe político-militar de 1° de abril de 1964.
            Neste período, início da década de 1960, lembrava-nos o filósofo Luís Washington Vita, no ensaio Introdução à Filosofia (São Paulo: Editora Melhoramentos), que o pensamento [social] brasileiro, mais do que criativo, é assimilativo das ideias alheias, e ao invés de abrir novos rumos, limita-se a assimilar e a incorporar o que vem de fora. Vejamos:
no processo de assimilação das ideias alheias, imprimimos as nossas características, de acordo, aliás, com o velho princípio: tudo o que se recebe toma a forma do recipiente, ou como certos perfumes que, em contato com a epiderme, sofrem uma alteração química que lhes afeta a fragrância, e nisso consiste nossa ´originalidade`” (cf. Vita, 1964: 10). 
Daí a história das ideias serem, em geral, uma história da penetração do pensamento que vem “de fora para dentro”, e ao invés de abrir novos rumos, limita-se a assimilar e a incorporar o que vem de fora. Daí a história da filosofia no Brasil, ser, em geral, uma história da penetração do pensamento alheio nos recessos de nossa vida especulativa, ser em suma, “a narrativa do grau de compreensão, da nossa capacidade de assimilação nas diferentes épocas e do nosso cotidiano de sensibilidade espiritual”. Contudo, o que há de curioso é que, não devemos perder de vista a circunstância de que tais ideias ao desembarcarem nas costas marítimas brasileiras, quase sempre passam por estranha, mas curiosa sorte: “algumas destas atingem nova significação, outras logo se perdem”. Disto resulta que a história das ideias nas Américas, em geral, e no Brasil, em particular, adquire grande importância, pois serve para determinar a sua generalidade, a sua aplicação às atividades humanas e sua flexibilidade cultural. 
Neste sentido, Carlos Nelson Coutinho se notabilizou, seguindo a trilha aberta pelo filósofo Washington Vita, já na volta do exílio, através do ensaio: “A democracia como valor universal” (1979), fortemente inovador na cultura dita comunista, exatamente por ter como assumida fonte de inspiração o pensamento político amadurecido em torno do antigo e extraordinário PCI, muito especialmente Enrico Berlinguer e Pietro Ingrao. Difícil subestimar o papel deste ensaio, sobre o qual, posteriormente, o próprio autor se voltaria em diferentes ocasiões, ratificando-o e retificando-o em variados pontos: esta é, precisamente, a função de um ensaio seminal. A partir deste momento, incorpora-se vigorosamente à reflexão de Carlos Nelson a presença de Antônio Gramsci: pode-se dizer que, a partir de uma original articulação de Lukács e Gramsci - isto é, dos problemas da ontologia do ser social e da política tal como experimentada nos países “ocidentais” -, tenha se estruturado a produção posterior de Carlos Nelson Coutinho, até o livro mais recente, De Rousseau a Gramsci. Ensaios de teoria política, publicado em 2011. Contudo, CNC afirmara antes, sobre Jean-Jacques Rousseau:
É através da articulação entre esses dois momentos (ou "partes") que se forma a totalidade orgânica e unitária da reflexão política rousseuniana: em minha avaliação, o Contrato deve ser lido como a proposta - no nível normativo do dever ser-de uma formação social e política alternativa àquela que aparece no Discurso como fruto de uma análise que se situa no nível do ser. É porque discorda profundamente do ser da desigualdade e da opressão, por ele identificado com a societé civile de seu tempo, que Rousseau propõe o dever ser de uma formação social na qual liberdade e igualdade se articulem indissociavelmente: a crítica do presente se completa assim com a proposição de uma utopia alternativa” (cf. Coutinho, 1996).
Neste aspecto, afirma Coutinho:
Penso que a contribuição de Gramsci à teoria democrática tem sua expressão mais destacada no conceito de hegemonia. E penso também que é precisamente esse conceito o principal ponto de articulação entre as reflexões gramscianas e alguns dos mais significativos complexos problemáticos da filosofia política moderna, em particular os que estão contidos nos conceitos de vontade geral e de contrato. É claro que não pretendo negar a óbvia vinculação de Gramsci com o marxismo, mas creio que - na construção de sua teoria da hegemonia - ele dialogou não apenas com Marx e Lenin, ou com Maquiavel, o que fez explicitamente, mas também com outras grandes figuras da filosofia política moderna, em particular com Rousseau e com Hegel. Essa interlocução permitiu a Gramsci resgatar uma dimensão fundamental do enfoque histórico-materialista da práxis política, nem sempre explicitada por Marx e Engels, ou seja, a compreensão da política como esfera privilegiada de uma possível interação consensual intersubjetiva. Ora, ainda que Rousseau não seja citado muitas vezes na obra de Gramsci, pode-se registrar a presença nessa obra de muitos temas semelhantes aos abordados pelo autor do Contrato social; penso, sobretudo, no fato de que há em Gramsci um conceito análogo ao de ´vontade geral`, central na obra do genebrino, ou seja, o conceito de ´vontade coletiva`, repetidamente invocado pelo pensador italiano. Quanto a Hegel, trata-se de um dos autores mais citados por Gramsci, que dele recolhe não apenas o estímulo inicial para a elaboração do seu específico conceito de ´sociedade civil`, mas também a noção de ´Estado ético`, com a qual, como vimos, identifica a sua concepção de ´sociedade regulada` ou comunista” (cf. Coutinho, 2011).      
Carlos Nelson Coutinho foi, desde o início, uma figura de exceção: mergulhou, de corpo e alma, no universo de Lukács (cf. 1968; 1972; 1973; 1986c), para voltar à tona em condições de extrair todas as consequências de uma reflexão filosófica rigorosa, “intransigente”. Ele sempre soube que não se pode fazer filosofia com a mesma desenvoltura com que se pode fazer uma salada, combinando alfaces com tomates e batatas, cebolas e pepinos, azeite e vinagre. As ideias não se ajustam umas às outras com a mesma facilidade com que se juntam os legumes e as verduras. A busca do conhecimento não trilha os caminhos explorados pela conquista do sabor, pela produção de efeitos gustativos na arte culinária. O conhecimento é intrinsecamente totalizante e depende de muito trabalho: a compreensão de cada aspecto particular depende de uma visão global que seja capaz de situar o fenômeno no seu contexto; e, ao mesmo tempo, essa visão global precisa ser sempre revista, reelaborada, como princípio historicista de autocrítica como ocorrera com o ensaio sobre a “democracia como valor”, inovando metodologicamente à luz dos novos aspectos particulares descobertos em cada setor. Essa constante articulação do todo e da parte exige muito rigor, muita persistência. Não tem nada a ver com o improviso fácil das saladas.
 
Com seu marxismo criativo, heterodoxo, transitou do campo da crítica literária para o campo da teoria política buscando sempre interpretar a formação social brasileira a partir das categorias de análise de Marx, Engels, Lenin, Lukács e Gramsci, tendo em vista a transformação da ordem estabelecida. São exemplares neste sentido os seus ensaios sobre Lima Barreto, Graciliano Ramos e célebre o ensaio: A democracia como valor universal, escrito no momento certo e com endereço certo, sem devolução ao remetente. Responsável pela coordenação e edição da obra do autor italiano no Brasil, Coutinho é autor de livros fundamentais para os estudos de teoria política no país, tais como: Georg Lukács. Marxismo e teoria da literatura (Editora Civilização Brasileira, 1968); El estructuralismo y la miseria de la razón (México: Ediciones Era,1973), A Democracia como Valor Universal e Outros Ensaios (Salamandra, 1984), Introducción a Gramsci. (México: Ediciones Era, 1986); Gramsci, um Estudo sobre Seu Pensamento Político (Editora Civilização Brasileira, 1999), Literatura e ideología en Brasil. (Havana: Editora Casa de las Américas, 1986); Marxismo e Política: A dualidade dos poderes. (SP: Editora Cortez, 1996), Ler Gramsci, entender a realidade (Editora Civilização Brasileira, 2003), Antonio Gramsci, Escritos Políticos (Editora Civilização Brasileira, 2004), O marxismo na batalha das ideias (São Paulo: Cortez, 2006), Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político (3ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007), Marxismo e política. A dualidade de poderes e outros ensaios (3ª. ed. São Paulo: Cortez, 2008), Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo (Cortez, 2ª. ed., 2008) e O estruturalismo e a miséria da razão (Editora Expressão Popular, 2ª. ed., 2010 [1ª. ed. 1971]). É também Editor das obras de Antônio Gramsci (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 10 vols., 1999-2005), e nestes dias: De Rousseau a Gramsci: Ensaios de teoria política (São Paulo: Boitempo Editorial, 2011).  
 
            De acordo com CNC,
Ora, uma das principais características do conceito gramsciano de hegemonia é a afirmação de que, numa relação hegemônica, se expressa sempre uma prioridade da vontade geral sobre a vontade singular ou particular, ou do interesse comum ou público sobre o interesse individual ou privado; isso se torna evidente quando Gramsci diz que hegemonia implica uma passagem do momento ´econômico-corporativo` (ou ´egoístico- passional`) para o momento ético-político (ou universal). Não vou aqui insistir sobre o fato de que essa prioridade do público sobre o privado, ou o predomínio da ´vontade geral`, é - para além da definição das necessárias "regras do jogo" - a essência da democracia, do republicanismo. Essa prioridade, que já é decisiva na definição aristotélica do ´bom governo`, reaparece com força no pensamento moderno. Em Rousseau, por exemplo, tal prioridade se torna não apenas uma questão central e uma tarefa dirigida para o presente, mas aparece também como o critério decisivo para avaliar a legitimidade de qualquer ordenamento político-social. Não é casual, assim, que surja em sua obra um conceito fundamental para a teoria democrática, o conceito de volonté générale, que não existe na tradição liberal; nessa tradição, temos apenas, quando muito, o conceito de ´vontade de todos`, entendido - nas palavras do próprio Rousseau - como soma dos muitos interesses privados ou particulares. Também na filosofia política de Hegel, outro pensador situado fora da tradição liberal, o conceito de vontade geral ou universal ocupa um posto central, tornando-se o fundamento da defesa hegeliana da prioridade do universal sobre o singular, do público sobre o privado; mas, comparado com Rousseau, Hegel se distingue por dar uma maior atenção à dimensão da particularidade no mundo moderno, ou seja, às mediações que intercorrem entre a vontade universal e as vontades singulares ou individuais” (cf. Coutinho, 2010).
                                              
Tese: O conceito de “revolução passiva”, ou seja, de um processo social de transformação que se dá “pelo alto”, com exclusão do protagonismo das classes subalternas (Gramsci), vale como uma luva para momentos essenciais de nossa formação Histórica, da Independência à mal chamada “Nova República” (1985). Cabe também lembrar o modo pelo qual A. Gramsci tratava das disparidades regionais na Itália, do que ele chamava de “a questão meridional”. Para ele, não se tratava de duas Itálias, já que o atraso do sul era funcional ao desenvolvimento do norte industrial, tal como ocorre em nosso país, invertidas as posições geográficas. Finalmente, quem estudou a história de nossa intelectualidade se surpreende com a pertinência para nós do conceito gramsciano de “nacional-popular”: tal como na Itália, também no Brasil os intelectuais caracterizaram-se quase sempre, com honrosas exceções, “por se manterem distantes do povo-nação”, gerando assim uma cultura abstratamente cosmopolita e “ornamental”. (cf. Coutinho, 2010).
            Escólio: “Eu nasci em 1943, glorioso ano da batalha de Stalingrado. Me formei em filosofia na Universidade Federal da Bahia, um péssimo curso, e com meus 18 ou 19 anos sabia mais do que a maioria dos professores. Meus pais eram baianos também. Meu pai era advogado e foi deputado estadual durante três legislaturas da UDN. Publicamente ele não era de esquerda, mas dentro de casa ele tinha uma posição mais aberta. Eu me tomei comunista lendo o Manifesto Comunista que o meu pai tinha na biblioteca. Ele era um homem culto, tinha livros de poesia. Minha irmã, que é mais velha, disse que eu precisava ler o Manifesto Comunista. Foi um deslumbramento. Eu devia ter uns 13 ou 14 anos. Aí fiz faculdade de Direito por dois anos porque era a faculdade onde se fazia política, e eu estava interessado em fazer política. Me dei conta que uma maneira boa de fazer política era me tomando intelectual. Aos 17 anos entrei no Partido Comunista Brasileiro, que naquela época tinha presença. O primeiro ano da faculdade foi até interessante porque tinha teoria geral do Estado, economia política, mas quando entrou o negócio de direito penal, direito civil, ai eu vi que não era a minha e fui fazer filosofia” (Depoimento de Carlos Nelson Coutinho).
            No que se refere à introdução de Antônio Gramsci no Brasil, foi responsável pelas seguintes publicações da obra do dirigente político italiano: apresentou juntamente com Leandro Konder e traduziu: Concepção dialética da história (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966; 6ª. ed., 1986), selecionou os textos e traduziu Literatura e vida nacional (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968; 3ª. ed., 1986) traduziu Os intelectuais e a organização da cultura (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968; 5ª. ed., 1987). Vale lembrar que Concepção dialética da história, Os intelectuais e a organização da cultura, Literatura e vida nacional junto com Maquiavel, a política e o Estado moderno (esta não traduzida por Carlos Nelson, mas por Luiz Mário Gazzaneo; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968; 8ª. ed., 1987) formam a primeira edição brasileira em quatro volumes dos Cadernos do cárcere (1929-1935), um organização temática, simétrica à primeira edição italiana, dos Quaderni escrito pelo dirigente do PCI Antônio Gramsci na prisão, durante o regime fascista em Itália. Foi publicado também na Itália Il pensiero politico di Gramsci, de Carlos Nelson Coutinho (Milão: Unicopli, 2006), uma versão revista e atualizada da monografia várias vezes editada no Brasil. A publicação coincidiu com a do livro de Guido Liguori, Sentieri gramsciani (Roma: Carocci). Os dois livros foram apresentados em Turim e em Roma, neste mês de maio de 2006. Em Turim, sob o patrocínio do Departamento de Ciência Política da Universidade turinense, intervieram na apresentação, além dos autores, Angelo D’Orsi, Chiara Meta e Marzio Zanantoni. Em Roma, promovida pela IGS–Itália, a apresentação contou com as intervenções de Roberto Finelli, Giorgio Baratta, Giovana Cavallari e Aldo Zanardo.
            Do ponto de vista etnobiográfico o golpe de Estado de 1964 forçou-o a sair da Bahia e o trouxe para o Rio de Janeiro. Na cidade maravilhosa, nas duras condições da repressão desencadeada pelo ciclo das ditaduras militares, o jovem ensaísta passou a combinar o trabalho e a militância política da resistência com a atividade de escritor: novos ensaios foram redigidos e reunidos no livro Literatura e humanismo, como vimos, lançado pela editora Paz e Terra, em 1967. Eram “tempos sombrios”, na expressão de Hannah Arendt, e o marxismo era estigmatizado como pensamento demoníaco, comprometido com uma vasta conspiração mundial urdida pelas forças do mal. Carlos Nelson se empenhou numa demonstração prática convincente de que o legado de Marx, na pena que o marxista húngaro Lukács o reassumira, passava por uma clara recuperação dos valores balizados pelo humanismo e o racionalismo.
            No exterior, Carlos Nelson viveu na Itália, em Portugal e na França. Ficou impressionado com as exigências de renovação que se manifestavam no chamado “eurocomunismo”. Aprofundou seus vínculos com o PCI e, relendo Gramsci, extraiu das posições do fundador do PCI implicações e consequências que iam além do alcance das interpretações feitas na época em que o havia traduzido para o português. Voltou ao Brasil no final de 1979, quando já se percebia a chegada da Anistia. Lançou, então, um ensaio que repercutiu como uma verdadeira “bomba” no pensamento de esquerda brasileiro: “A democracia como valor universal” (publicado no n.º 9 da revista Encontros com a Civilização Brasileira e depois incluído no livro: A Democracia como Valor Universal e outros ensaios, que teve duas edições, uma pela Livraria Editora Ciências Humanas e outra pela Salamandra). Nesse ensaio - como notou Francisco Weffort - “um marxista empreendia sobre a questão democrática uma reflexão mais vigorosa do que aquela que até então vinha sendo feita pelos liberais”. Fazia uma opção radical pela democracia, que trazia com ela uma proposta de socialismo necessariamente nova, portanto, capaz de absorver elementos provenientes da tradição liberal, como a preservação dos direitos e garantias individuais, o fortalecimento da cidadania, a proteção das minorias, o pluripartidarismo, o respeito à alternância no poder, etc.
            Num artigo escrito para um seminário internacional realizado em Ferrara, na Itália, e publicado no Brasil pela revista Presença (n.º 8), com o título “As categorias de Gramsci e a realidade brasileira”, depois incluído no volume Gramsci e a América Latina. (Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1988), Carlos Nelson insistiu na tese de que a sociedade brasileira, apesar do peso enorme do atraso, já está bastante “ocidentalizada” em suas condições objetivas, institucionais, porém - no plano subjetivo - ainda resta um “longo caminho a percorrer na luta pela ampliação da socialização da política”. Carlos Nelson procurou extrair algumas consequências dessas constatações no livro A dualidade de poderes (Ed. Brasiliense, 1985), cujo subtítulo é: “Introdução à teoria marxista de Estado e revolução”, abrindo um claro debate com o marxismo onde Lênin discute a teoria marxista em diálogo com os anarquistas, e especialmente aqueles a que chama de oportunistas, os pensadores e partidos socialistas que tendiam a uma interpretação de evolução gradual do capitalismo ao socialismo defendendo os meios parlamentares como legítimos quando não únicos para a luta do proletariado frente aos capitalistas.
            Entre as muitas mensagens de despedida do bravo pensador marxista, a Editora Boitempo fez publicar, em sua página, a seguinte mensagem: “Morreu o grande intelectual marxista Carlos Nelson Coutinho, depois de meses combatendo um câncer dos mais violentos. Carlito, como era chamado pelos amigos, descobriu a doença em fevereiro deste ano, quando nos comentou pelo e-mail: “Ainda estou perplexo, mas disposto a brigar. Também sobre isso, tenho tentado me valer do mote de Gramsci: pessimismo da inteligência, otimismo da vontade. Torçam por mim”. Foi o que fizemos esses meses todos. A direção da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ, também em sua página eletrônica, deixou nota de pesar pelo falecimento do Professor Emérito Carlos Nelson Coutinho:
“- É com profunda tristeza que comunicamos o falecimento na manhã de hoje do nosso querido professor emérito Carlos Nelson Coutinho, reconhecido dentro e fora do país como um dos mais influentes pensadores brasileiros do final do século XX e princípio do XXI. Sua atitude de vanguarda, ao introduzir, na cultura brasileira, o pensamento de dois clássicos do debate teórico filosófico europeu do século XX, G. Lukács e A. Gramsci, e a elaboração de uma obra, que tem o selo claro de uma intervenção política na defesa do socialismo e na renovação do marxismo, o revelam como um dos melhores produtos do que ele mesmo denominou a “década longa dos anos 60”, conjuntura que, aberta em 1956, no XX Congresso do PC da URSS e terminada em meado dos anos 70, favoreceu em meio às agitações de estudantes e trabalhadores em 1968, o terceiro-mundismo, o eurocomunismo, a Primavera de Praga os melhores anos de florescimento do marxismo”.
            Em primeiro lugar, observara Coutinho, no ensaio: A Democracia Como Valor Universal (1979: 33 e ss.) que: a) a questão do vínculo entre socialismo e democracia marcou sempre, desde o início, o processo de formação do pensamento marxista; e, b) direta ou indiretamente, esteve na raiz de inúmeras controvérsias que assinalaram e assinalam a história da evolução desse pensamento. Além disso, c) a questão do valor universal da democracia está na base não apenas das polêmicas entre os chamados revisionistas e ortodoxos, na virada do século 20, mas reaparece igualmente entre os principais representantes da esquerda marxista na época imediatamente subsequente à Revolução de Outubro de 1917. E finalmente, d) a concepção que Enrico Berlinguer sintetizou expressivamente no discurso que pronunciou em Moscou, em 1977, por ocasião do 60° aniversário da Revolução de Outubro:
A democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é obrigado a retroceder, mas é também o valor historicamente universal sobre o qual fundar uma original sociedade socialista”.
            Em segundo lugar, conclui: Uma prova dessa universalidade são as acesas polêmicas que têm hoje lugar entre as forças progressistas brasileiras, envolvendo o significado e o papel pela democracia em nosso País. Pode-se facilmente constatar, nesse sentido, a presença de diferentes e até mesmo contraditórias concepções de democracia entre as correntes que se propõem representar os interesses populares e, em particular, os das massas trabalhadoras. Trata-se de um fato normal e saudável, contando que não se perca de vista a necessidade imperiosa de acentuar - na presente conjuntura - aquilo que une a todos os oposicionistas, ou seja, a luta pela conquista de um regime de liberdades político-formais que ponha definitivamente termo ao regime de exceção que, malgrado a fase de transição que se esboça, ainda domina o nosso País (cf. Coutinho: 1979: 34).
Para Carlos Nelson Coutinho, acerca da forma de abordagem, entendemos ser a “análise imanente ou estrutural” a via mais apropriada de acesso ao corpus teórico Coutiniano, onde as transformações políticas e a modernização econômico-social do Brasil de tempos em tempos (o que é conjuntural) foram efetuadas no quadro de uma “via prussiana”, ou seja, através da conciliação entre frações das classes dominantes, de medidas aplicadas “de cima para baixo”, com a conservação essencial das relações de produção atrasadas (o latifúndio) e com a reprodução (ampliada) da dependência ao capitalismo internacional; essas transformações “pelo alto” tiveram como causa e efeito principais a permanente tentativa de marginalizar as massas populares não só da vida social em geral, mas sobretudo do processo de formação das grandes decisões políticas nacionais. Os principais exemplos são, tanto pontuais como inúmeros:
quem proclamou nossa Independência política foi um príncipe português, numa típica manobra “pelo alto”; a classe dominante do Império foi a mesma da época colonial; quem terminou capitalizando os resultados da proclamação da República (também ela proclamada “pelo alto”) foi a velha oligarquia agrária; a Revolução de 1930, apesar de tudo, não passou de uma “rearrumação” do velho bloco de poder, que cooptou - e, desse modo, neutralizou e subordinou – alguns setores mais radicais das camadas médias urbanas; a burguesia industrial floresceu sob a proteção de um regime bonapartista, o Estado Novo,, que assegurou pela repressão e pela demagogia a neutralização da classe operária, ao mesmo tempo em que conservava quase intocado o poder do latifúndio, etc. Mas essa modalidade de “via prussiana” (Lênin, Lukács) ou de “revolução-restauração” (Gramsci) encontrou seu ponto mais alto no atual regime militar, que criou as condições políticas para a implantação em nosso País de uma modalidade dependente (e conciliada com o latifúndio) de capitalismo monopolista de Estado, radicalizando ao extremo a velha tendência a excluir tanto dos frutos do progresso quanto das decisões políticas as grandes massas da população nacional”.
            Enfim, quando chegou à Itália, Carlos Nelson Coutinho pode acompanhar de perto a evolução - que vinha latente desde o pós-guerra com a política da “via italiana para socialismo” de Palmiro Togliatti –, do PCI da doutrina do marxismo-leninismo para o chamado eurocomunismo (uma expressão cunhada pelo jornalista iugoslavo Frani Barbieri, em um artigo publicado em 26 de junho de 1975). Por demorado, devo me abster de narrar em detalhe processo tão rico. Mas somente pontuar como síntese que em 1977 o então Secretário Geral do PCI, o histórico dirigente Enrico Berlinguer, pronunciou na tribuna de uma conferência mundial de partidos comunistas, na simbólica Moscou, um discurso fundamental de reapreciação/revisão do valor da democracia na estratégia comunista, cujas palavras principais foram as seguintes: - “a democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é obrigado a retroceder, mas também é o valor historicamente universal sobre o qual fundar uma sociedade socialista”.
São precisamente as palavras do discurso de Berlinguer que vão inspirar e dar o título a mais famosa intervenção política de Carlos Nelson Coutinho, o artigo “A democracia como valor universal”. Junto com Leandro Konder, entre outros, eram intelectuais e militantes do PCB que já haviam se pronunciado publicamente em 1968 contra a invasão por tanques soviéticos da (hoje inexistente) Tchecoslováquia, pondo fim à “Primavera de Praga”. Portanto, já havia internamente avant la lettre no Brasil uma tendência positiva, da parte de um grupo minoritário comunista, em relação à recepção das ideias do eurocomunismo. O cerne das ideias eurocomunistas, que recuperavam elementos de A. Gramsci, residia na revalorização estratégica do conceito de sociedade civil, resultando daí, em consequência, uma concepção nova do Estado no âmbito da tradição marxista italiana. Bibliografia geral consultada:
VITA, Luís Washington, Escorço de Filosofia no Brasil. Coimbra: Tipografia da “Atlântida”, 1964, pp. 10 e ss.; HEGENBERG, Leônidas, Luís Washington Vita. Introdução à Filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1964; LUKÁCS, Georg, El asalto a la razón. Barcelona-México, Grijalbo, 1968; Idem, Per l`ontologia delVessere sociale. Roma: Riuniti, vol. 2, 1981; ARBIZZANI, Luigi. “Fotostoria 1893-1960”. In: et al., Il sindacato nel bolognese. Le Camere del Lavoro di Bologna dal 1893 al 1960. Contributi per una storia sociale. Bologna: Ediesse, 1988, pp. 457-492; Artigo: “Cientista político Carlos Nelson Coutinho morre aos 70 anos no Rio”. Disponível no site: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/09/cientista-politico-carlos-nelson-coutinho-morre-aos-70-anos-no-rio.html; Entrevista com Carlos Nelson Coutinho. In: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/; COUTINHO, Carlos Nelson, Literatura e Humanismo. Ensaios de crítica marxista. 1ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967; Idem, Georg Lukács. Marxismo e teoria da literatura. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968; Idem, O Estruturalismo e a Miséria da Razão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972; Idem, El estructuralismo y la miseria de la razón. 1ª. ed. México: Ediciones Era, 1973; Idem, Realismo e Anti-Realismo na Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974; Idem, “Cultura e Democracia no Brasil”. In: Encontros com a Civilização Brasileira. V. 17. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979; Idem, Gramsci. Porto Alegre: L & PM Editores, 1981; Idem, A Democracia como Valor Universal e outros ensaios. Rio de Janeiro: Editora Salamandra, 1984; Idem, “E caímos na legalidade”. In: Jornal do Brasil - Revista Domingo. Rio de Janeiro, 14.04.1985; Idem, “A Escola de Frankfurt e a Cultura Brasileira”. In: Presença, n° 7. São Paulo, 1986a; Idem, Introducción a Gramsci. 1ª ed. México: Ediciones Era, 1986b; Idem, Literatura e ideología en Brasil. 1ª ed. Havana: Casa de las Américas, 1986c; Idem, “Do ângulo ao marxismo - comentário do ensaio ´O novo movimento teórico` de Jeffrey C. Alexander”. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 4 vol. 2, jun/1987, pp. 39-42; Idem, Marxismo e Política: A dualidade dos poderes. 1ª edição. São Paulo: Cortez, 1996; Idem, “Crítica e utopia em Rousseau”. In: Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n° 38.. São Paulo, dec. 1996; Idem, Socialismo e Democrazia in Gramsci”. In: Critica Marxista, Roma, v. n.5-6, pp. 37-47, 1997; Idem, “Attualità e limiti del ´Manifesto`”. In: Critica Marxista, Roma, v. n.5, p. 20-24, 1998; Idem, “Socialismo e democracia: a atualidade de Gramsci”. In: Alberto Aggio. (Org.). Gramsci. A vitalidade de um pensamento. 1ª ed. São Paulo: UNESP, 1998, v. 1, p. 17-36; Idem, “Gramsci no Brasil: recepção e usos”. In: João Quartim de Moraes. (Org.). História do Marxismo no Brasil. História do Marxismo no Brasil. 1ª ed. Campinas: UNICAMP, 1998, v. 1, pp. 123-157; Idem, Gramsci: Um estudo de seu pensamento político. 1ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999; Idem, “Democrazia e socialismo in Gramsci”. In: Giorgio Baratta; Guido Luguori. (Org.). Gramsci da un secolo all'altro. 1ª ed. Roma: Editori Riuniti, 1999, v. 1, pp. 39-56; Idem, “Volontà generale e democrazia in Rousseau, Hegel e Gramsci”. In: Giuseppe Vacca. (Org.). Gramsci e il Novecento. 1ª ed. Roma: Carocci, 1999, v. 2, pp. 291-312; Idem (Org.), Antonio Gramsci. Cadernos do Cárcere. Vol. 2. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, 334 páginas.;  Idem (Org.), Antonio Gramsci. Cadernos do cárcere. Vol. 3. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 427 p.; Idem, “La società civile in Gramsci e il Brasile di oggi”. In: Critica Marxista, Roma, v. n.3-4, pp. 67-80, 2000; Idem, “Gramsci e i ´Sud` de mondo”. In: Critica Marxista, Roma, Itália, n.6, p. 38-47, 2003; Idem, (Org.); TEIXEIRA, A. P. (Org.), Ler Gramsci, entender a realidade. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. V. 1. 298 páginas.; Idem, (Org.), Antonio Gramsci, Escritos políticos, 2 vols. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. v. 2. 1084 páginas; Entrevista concedida por Carlos Nelson Coutinho: “Democracia: um conceito em disputa”. Disponível em: http://www.socialismo.org.br/portal/filosofia/ (22.12.2008); KONDER, Leandro, “Carlos Nelson Coutinho (N. em 1943)”. In: Revista Espaço Acadêmico - n° 89, outubro de 2008; VÉLEZ, Ricardo Rodríguez, “La filosofia brasileña en el siglo XX”. In: Estado, cultura y sociedad. Santafé de Bogotá: Universidad Central, 2000, pp. 373-402; SILVA, Vladmir Luís da, “Via Prussiana” e a “Revolução Passiva” no Pensamento de Carlos Nelson Coutinho: Transposição Ajustada ou Decalque? Dissertação de Mestrado em História. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: PUC/SP, 2012, 193 páginas, entre outros.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

A fabricação de um cientista social



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A fabricação de um cientista social


Texto proferido no I Ciclo de debates - Cientista Sociais: Memória, Profissão e Organização Sindical no Ceará. dia 26/09/2012
Mesa: Mercado de trabalho e a profissão do Cientista Social

Autor: Pedro Jorge Chaves Mourão (Mestre em Sociologia - UFC)



Nada mais em processo de formação do que um pós-graduando.
Porque além de aluno ele deve ser também um professor.
Gostaria de começar minha fala fazendo um relato de como foi a minha formação como cientista social.

Eu estudava em uma escola do bairro que não chegava a ser a mais cara, mas também não chegava a ser a uma escola pública. Minha mãe queria para mim um futuro melhor do que ela teve então fazia um sacrifício ou outro para me manter nessa escola. Acredito que naquela época eu já havia ouvido falar em sociologia, antropologia ou ciência política. Mas infelizmente não me lembro onde. No vestibular, escolhi algo que tivesse a ver com as matérias que eu era bom.
Historia e geografia eram as que eu mais gostava, principalmente a geógrafia que falava sobre as condições de vida das pessoas e a história que não era tão antiga para não ter nada em comum com o que eu vivia. Algo me disse que a faculdade certa para mim era ciências sociais porque o nome lembrava a disciplina de Estudos Sociais que tive no primário. No começo da faculdade eu estudava com muito orgulho todos os livros da bibliografia. Eu queria mostrar serviço e fazia todas as tarefas de casa. Aos poucos fui percebendo algo estranho na faculdade, todos falavam muito e liam muito, mas a palavra “social” parecia mais como uma placa na porta da coordenação, ou como a estampa de uma blusa de estudante.
Logo comecei a me perguntar como seria minha vida depois da faculdade, que emprego eu iria ter e o que eu iria fazer. Perguntei aos meus colegas que estavam se formando aonde eles estavam trabalhando, ou onde pretendiam trabalhar e cada vez que eu perguntava alguns faziam uma cara de ofendidos e outros falavam em fazer pesquisas, escrever artigos e livros. A maioria deles hoje conseguiu empregos em outras áreas fazendo outras coisas e nunca terminaram aquela pesquisa que queria fazer.
As vezes eu perguntava para os professores se havia alguma pesquisa que eu pudesse participar, quando haveria alguma seleção para ser bolsista, estágio em algum empresa ou algo parecido, e do mesmo jeito que os colegas, alguns faziam uma cara de ofendidos e outros falavam em fazer pesquisas, escrever artigos e livros. As seleções para bolsistas raramente vi, com poucas exceções de panfletos que eram rapidamente arrancados dos murais por colegas mais desesperados.
Me falaram que as ciências sociais era uma faculdade terapêutica e que iria servir para toda minha vida mesmo que fosse para me fazer uma pessoa melhor. Naquele momento o que me preocupava mais era pagar as contas de água, luz e telefone. Logo percebi que as ciências sociais não era uma faculdade para pobres. Não havia o curso noturno e eram raros os estágios, mais ou menos 1 a cada ano e as poucas bolsas que alguns professores conseguiam de financiamento público dificilmente não era divididas entre os alunos mais “chegados”.
Havia disciplinas muito boas, mas nenhuma delas falava com eu poderia usar as ciências sociais para poder sobreviver. Uma vez até tentei montar uma empresa de pesquisa social. Mas poucos de nos sabíamos como fazer aquilo e os professores que sabiam não demonstravam interesse em ensinar. Nas disciplinas de licenciatura, notei algo interessante, que os professores que queriam nos ensinar a ser professores, nunca tinham sido professores de ensino médio. Então como alguém que nunca ensinou em ensino médio poderia em ensinar a lidar com esse cotidiano?
A didática é diferente, o conteúdo é outro, os métodos pedagógicos são outros.

 E onde deveríamos aprender a prática, nos ensinavam a teoria, e quando nos ensinavam a teoria chegava o sono, pois faltava didática.

Depois percebi que não era culpa dos professores, hoje vejo que a lógica da universidade e a lógica de mercado de trabalho dificilmente permitiam que um cientista social pudesse transitar nesses dois mundos ao mesmo tempo. A prova maior foi quando notei que quase nenhum professor meu poderia me encaminhar para alguma vaga de trabalho, porque eles mesmos não conheciam nenhum posto de trabalho para um cientista social... fora o posto que eles já ocupavam na Universidade.    
Logo percebi os possíveis caminhos que poderia ter dentro das Ciências Sociais.

1)   
Me tornar professor no ensino médio trabalhar de segunda as sexta em diversos colégios e ganhar aproximadamente 2mil reais. Esse dinheiro provavelmente não iria gastar porque estaria ocupado demais corrigindo provas ou cansado pela maratona de peregrinação de escola em escola. Mas antes para dar aula em alguma escola eu precisaria ter algum “amigo” que me indicasse para dar aula, e se possível alguns anos de experiência em docência  ou passar no concurso do Estado. 

2)   
Ou como bacharel eu poderia ser pesquisador em alguma ONG trabalhando por temporadas, e de projeto em projeto com sorte conseguir pagar as contas ou em um órgão do Estado. Mas para isso além de precisar da indicação de algum amigo e experiência eu ia precisar ser no mínimo mestre ou doutor porque a esses locais raramente dariam chance para um graduado ao invés de um pós-graduado.

Uma opção era a pós graduação, então eu tentei. Havia o boato que só quem passava eram os indicados pelos professores. Juntei dinheiro, larguei meu estágio na prefeitura onde antes haviam me dito que eu iria aprender mais sobre minha profissão, mas na verdade passei um ano consertando computadores velhos. Aproveitei o dinheiro que juntei e em casa sem sair para nenhum canto por 6 meses fiquei estudando para a seleção. Fiz a seleção de dois mestrados e passei nos dois. De fato, os aprovados não eram só escolhidos por afinidade, mas também pelo mérito das provas e do projeto de pesquisa que escreveram.
Todos me parabenizaram, mas eu nunca consegui parar de pensar nós outros colegas que ficaram no meio do caminho. Aos poucos, eu vi, da minha turma de 50 colegas esperançosos se formarem 9 (até a minha última contagem) e desses 9, 3 foram fazer mestrado, os outros estão dando aula em escolas do estado ou privadas e provavelmente tem uma segunda fonte de renda para viver. Dos outros 41 tive poucas notícias, os que puderam pagar faculdades privadas foram para cursos que tem vazam para o mercado (jornalismo, direito, etc). Mas, a maioria deles não teve essa sorte. Já na seleção do mestrado vi 140 outros colegas tentarem sem êxito. Hoje me pergunto se existem vagas suficientes para todos nós como professores da UFC e da UECE. Acho que não. Alguém pode dizer, “mas os concursos públicos?”. Tudo bem que quando eu era criança nunca pensei que iria ser cientista social, mas arrisco a dizer que quase ninguém quer ser formar em Ciências Sociais para se técnico administrativo em uma repartição pública. A maioria quer trabalhar na área. Mas onde estão nossas vagas? Não estão, foram cortadas por que os políticos acham que a cunhada deles que é especialista em Astrologia pode muito bem orientar um projeto de política pública. Para eles dá no mesmo.         

Eu tenho a ligeira impressão de que a maioria das pessoas não sabe a diferença entre um filósofo, um astrólogo, um sociólogo e um analista...

Se queremos resolver e não só discutir os problemas das ciências sociais temos que tecer uma crítica endereçada a nós.

As Ciências Sociais erram quando acharam que o "distanciamento" das influências sociais ia nós dar a imparcialidade.
As Ciências Sociais erram quando forçaram seus estudantes a não pensarem nos problemas sociais e sim nos problemas sociológicos.
As Ciências Sociais erraram quando não se preocuparam em explicar para o povo para que servia aquelas pesquisas que tanto a gente dizia que estava fazendo.
As Ciências Sociais erraram em não se preocupar em dar a visibilidade necessária para o resultado dos seus trabalhos, deixando para a crítica roedora dos ratos.
As Ciências Sociais erraram quando só trabalharam a teoria e esqueceram a aplicabilidade do que criaram.
As Ciências Sociais ERRARAM quando foram narcisistas quando só ficaram olhando para seu próprio umbigo coberto de artigos e livros ao invés de si mostrar para a sociedade e dizer para ela quais eram seus objetivos concretos.

O resultado é que hoje todos os que bebem das ciências sociais (jornalistas, administradores, assistentes sociais, arquitetos, urbanistas, advogados, turismólogos etc). Eles sabem muito bem para que ela serve. Mas infelizmente o povo ainda não sabe que as ciências sociais servem principalmente para prender ou libertar as pessoas....mesmo que sejam nós mesmos.



sábado, 22 de setembro de 2012

MASTURBAÇÃO SOCIOLÓGICA: AS DUAS FACES DA MOEDA 2 Entrevista com o Prof. Jorge Ventura de Morais


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Pedro Mourão
Ok, o senhor poderia falar brevemente sobre sua formação?
Como um bacharel em Administração de empresas foi querer fazer mestrado em Sociologia?

Jorge Ventura de Morais
Descobri, em uma disciplina chamada Sociologia das Organizações, que eu não tinha nada a ver com Administração. Como venho de uma família muito pobre do interior de Pernambuco, não tinha como voltar atrás. Terminei, então, o bacharelado em Administração e parti para o mestrado em sociologia, na UFPE, e doutorado em sociologia na London School of Economics (Universidade de Londres).

Pedro Mourão
Seus estudos no mestrado sobre a estrutura de poder no sindicato dos trabalhadores rurais de Arcoverde-PE tem relação com a sua trajetória familiar então?

Jorge Ventura de Morais
Tem, sim! Procurei dar algum tipo de contribuição à história da cidade onde me criei. Como eu estava interessado na trajetória política dos sindicatos brasileiros, que se abria com a emergência de Lula, como líder sindical, desenvolvi uma pesquisa em que mostro como os militares aparelharam os sindicatos, em grande parte do país, como centros de assistência médica e odontológica. Ao mesmo tempo, procurei, já ali, dialogar com a teoria sociológica mais geral - preocupação persistente dos meus trabalhos até hoje. No caso, minha referência foi Robert Michels e a sua obra “Sociologia dos Partidos Políticos”.

Pedro Mourão
E a temática de sua tese de doutorado na London School of Economic foi uma consequência de suas análises do sindicalismo em Pernambuco?
Como um pensador do sindicalismo se tornou um teórico da Sociologia do esporte?

Jorge Ventura de Morais
Foi desdobramento! Pesquisa séria se faz com uma agenda de pesquisa. Os achados primeiros me permitiram, no doutorado, ampliar a análise da política interna dos sindicatos. Mas, diferentemente da dissertação, tratei do processo político interno dos sindicatos - a democracia sindical, como se diz na literatura especializada. Meu foco se deu na dinâmica das eleições sindicais, construções de canais que ligassem os sindicatos ao chão-de-fábrica, construção de pautas de negociação, do processo de greve etc.

Jorge Ventura de Morais
Com relação à sua segunda pergunta, é fato que sou muito inquieto. Passo cerca de 6-7 anos pesquisando um assunto, mas daí já me sinto atraído pela riqueza da vida social. Antes de chegar ao futebol, já trabalhei - e continuo trabalhando - na área de sociologia das artes. Com relação ao futebol, foi uma mistura de amor pelo esporte, constatação da sua importância na constituição da nossa vida social e insight de que na dinâmica do jogo é possível compreender uma série de problemas sociológicos mais gerais.

Pedro Mourão
O senhor acredita que existe alguma analogia entre a Sociologia política e a Sociologia do Esporte?

Jorge Ventura de Morais
Sim, completamente! A minha pesquisa sobre regras no futebol (poderia ser em qualquer outro esporte) faz fronteira com o direito, a filosofia e a política, pois diz respeito, não às regras em abstrato, mas a como eles são de fato implementadas pelos atores sociais. Vou dar dois exemplos distintos para mostrar o paralelo. Embora possamos saber das regras do futebol, nós não sabemos como elas serão interpretadas e aplicadas nos jogos de hoje à tarde. Embora nós - e especialmente os juristas - saibamos das leis que regem o nosso país, nós temos de acompanhar a leitura das interpretações e invocações de artigos e parágrafos dos códigos (penal e processual penal), no caso da Ação Penal 470 (dita Mensalão), para sabermos - e muitas vezes nos surpreendermos, e criticarmos ou apoiarmos - quais foram os caminhos percorridos por cada Ministro na tomada de decisões. Esta característica das regras (regras do futebol, leis formais, normais), isto é, um certo grau de elasticidade, sem a qual não existiria a vida social, foi objeto de investigação de Wittgenstein e Heidegger na filosofia e de Bourdieu e, mais notadamente, de Norbert Elias, na sociologia.

Pedro Mourão
Muito interessante, "Assim na política, como no esporte".
           
Jorge Ventura de Morais
A política é mais dinâmica! No esporte, mais 'fechado'. Nós como torcedores não podemos influenciar diretamente o juiz (daí, talvez, porque o xinguemos a mãe dele. Na política, nós podemos votar e encaminhar protestos e propostas que podem ter influência no comportamento dos políticos. E o Congresso sempre está votando novas leis, enquanto que no futebol, as mudanças são muito conservadoras.

Pedro Mourão
Faço uma pergunta a título de provocação: Será que a política é hoje um campo tão aberto a intervenção popular como pensamos? Digo isso porque hoje meu objeto de estudo é a participação popular no parlamento estadual.
Mas mudando de assunto...

Essa relação entre a lógica da política e a lógica do esporte seria o que Bourdieu chamou de homologia entre os campos sociais? E quais são os teóricos que o senhor costuma articular em suas análises da Sociologia do Esporte e onde se encaixa a teoria sociológica de Jon Elster em suas análises?

Jorge Ventura de Morais
Eu responderia sim a pergunta sobre Bourdieu. Com relação à segunda, Elster não tem sido uma influência de maior monta. Uma leitura dele, em 2005, em conjunto com meu colega José Luiz Ratton, nos provocou a pergunta sobre como funcionaria a aplicação de sua teoria dos constrangimentos na área dos esportes. Aliás, Elster escreve que seria interessante fazer este tipo de pesquisa. No decorrer da pesquisa, me aproximei mais da obra de Norbert Elias. Entre 2009 e 2010, tive várias oportunidades, na Inglaterra, de conversar com Eric Dunning, aluno e colaborador de Norbert Elias, sobre futebol, regras, processo civilizador etc. Mas, ao mesmo tempo, redescobri os estudos de Harold Garfinkel, na etnometodologia, sobre funcionamento de regras de convivência, bem como em jogos. Li muito, também sobre a Sociologia das Práticas Sociais derivada de Ludwig Wittgenstein. Uma terceira vertente teórica tem a ver com a sociologia das moralidades decorrente do trabalho de Luc Boltanski. De modo que meu trabalho em sociologia do futebol é fortemente influenciado por estas perspectivas. Não necessariamente misturadas. O meu último paper publicado na Inglaterra é muito Garfinkeliano/Wittgensteiniano, mas outro sobre o gol da mão de Maradona na Copa de 1986 é mais Eliasiano/Boltanskiano.
Este segundo trabalho sairá publicado em coletânea especial sobre Herois, Mitos e lendas do futebol mundial um pouco antes da Copa do Mundo.
Pedro Mourão
Professor, e como começou o debate da legitimidade social das pesquisas sociológicas com Luis Nassif que escreveu o artigo criticando sua pesquisa? (para ver mais dados sobre a pesquisa do Professor Jorge Ventura clique aqui para ver o Curriculum Lattes http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=B922616)

Jorge Ventura de Morais
Debate? Não houve debate. Ele fatiou a introdução de um texto meu publicado em 2008 como exemplo da inutilidade de pesquisas financiadas pelo CNPq.
Depois o expôs à crítica anárquica dos internautas e não publicou minhas mensagens, a não ser a última - desconfio de por causa da pressão da comunidade acadêmica, que foi simplesmente um resumo de minhas publicações sobre sociologia do futebol.

Pedro Mourão
Compreendo. Mas eu obtive dados que indicam que houve um conflito anterior que desencadeou a crítica do Nassif sobre seu trabalho. Ver postagem anterior sobre esse assunto aqui: http://cienciasocialceara.blogspot.com.br/2012/09/masturbacao-sociologica-as-duas-fases.html
A que o senhor atribui crítica de Luis Nassif, e o que o senhor pensa a respeito desse debate que surgiu sobre a legitimidade social das pesquisas sociológicas?

Jorge Ventura de Morais
Ah, sim! Eu disse, no facebook, via um amigo comum que a análise dele sobre o chamado mensalão era ruim.

Pedro Mourão
Hummm

Jorge Ventura de Morais
Sobre as razões da forma da crítica do blogueiro, eu teria de fazer ilações...
É melhor nos concentrarmos na questão do debate sobre financiamento de ciência, tecnologia, artes etc, no país. Foi interessante perceber nos comentários desrespeitosos para comigo pelos internautas a distância que ainda separa as universidades, como centros de pesquisa, do cidadão comum. Com isto, não estou desculpando aqueles que me agrediram gratuitamente, sem me conhecer, sem me dar direito de resposta, sem, ao menos, olhar o meu (curriculum) Lattes. Só estou dizendo que é preciso fazer um esforço de ambos os lados para aproximarmos as universidades e a população, em termos de um nível mínimo de entendimento acerca das funções da primeira e como pesquisas - aparentemente inúteis podem servir à sociedade. Por outro lado, foi possível perceber a persistência de desentendimentos dentro da própria comunidade acadêmica sobre o que deve ou não ser financiado, que áreas são importantes etc. Para ilustrar, fui criticado por uma pessoa da área de humanidades por estar desenvolvendo este tipo de pesquisa quando "há muitas crianças morrendo de fome no País", ou "há altos níveis de violência urbana no Brasil". Já um físico postou a negativa que ele recebeu do CNPq para desenvolver pós-doutorado em importante universidade estrangeira, enquanto estaria financiando as minhas tolices.

Pedro Mourão
Como poderíamos estreitar esse abismo entre a sociedade e a sociologia?
Se de um lado todo trabalho científico serve algum interesse social, político e econômico seria possível fazer uma ciência social desvinculada dos interesses coletivos?
Não é de hoje que vemos colegas na pós-graduação procurando somente um título e uma bolsa sem buscar fazer um trabalho científico sério e responsável socialmente.
O que seria para o senhor uma Sociologia comprometida com as questões sociais? Isso iria acabar com a liberdade científica?

Jorge Ventura de Morais
Veja, eu não tenho uma resposta. É um problema difícil de ser resolvido. Acredito que seja um problema presente em todas as sociedades. Somente acho que aqui a falta de diálogo entre as duas partes ainda é alta. Acredito que o desenvolvimento da educação básica universal e de qualidade seria um caminho inicial. Mas nessa educação talvez as questões científicas pudessem ser mais bem trabalhadas para que os estudantes pudessem compreender a não somente a importância dos seus campos de atuação, mas também das outras áreas. Vou dar um exemplo: tenho muita dificuldade de convencer minha filha de 16 anos, que se interessa por estética, sobre a importância de estudar física, matemática e química. Acredito que pela forma como ensinam estas disciplinas nas escolas.
           
Um outro ponto - mas aí depende de outras variáveis -, seria uma maior oferta de revistas de divulgação cientifica. Existem poucas no Brasil, embora de qualidade. Tem havido um esforço, mas é preciso criar o hábito de leitura sobre estes assuntos. Em suma, nos tornarmos alfabetizadas em ciência, tecnologia e artes.
Pedro Mourão
Alfabetizados? Não seria analfabetizados?

Jorge Ventura de Morais
Nós somos analfabetos. É preciso nos alfabetizarmos sobre ciência, tecnologia e artes...
Pedro Mourão
Sim. Os critérios para concessão de financiamento das pesquisas científicas no Brasil são permeados pela subjetividade e pelos interesses políticos, culturais e sociais de quem libera a verba?

Jorge Ventura de Morais
Mas há outra parte da sua pergunta a que não respondi. Eu acredito que toda a sociologia trata de questões sociais sérias. Isto não deve ser confundido com o fato de haver, em qualquer sociedade, pessoas que não tem interesse sério nos estudos, mas simplesmente em manter uma bolsa de estudos. Se assim não fosse, não seríamos humanos, os seres sociais, para pensar com Durkheim. Uma certa taxa de desvio é normal numa sociedade como a nossa.

Pedro Mourão
O senhor se preocupa em fazer uma sociologia que saia dos muros da universidade e alcance a sociedade? Isso seria relevante para as ciências sociais?

Jorge Ventura de Morais
Depende do que você chame de "sair dos muros da universidade" e também o que seria "alcance a sociedade"... Eu deveria brecar financiamentos sobre teoria sociológica sob o argumento da falta de aplicabilidade imediata na sociedade e a uma intratabilidade para o público leigo? Acredito que não! Teoria "pura" é importante para uma série de áreas, enquanto não tem muita relevância para outras. No caso da sociologia, da ciência política, da antropologia, da física, da matemática, ela é fundamental, é parte do próprio fazer destas disciplinas. Já imaginou a gente brecar financiamento numa pesquisa em teoria da democracia sob o argumento de que tal pesquisa não vai trazer um bem tangível como uma geladeira para a sociedade?

Pedro Mourão
Kkkkkkkkkkk .           Verdade.

Jorge Ventura de Morais
Eu quero democracia e uma geladeira boa e econômica para a sociedade.
           
Pedro Mourão
Mas em certa medida, o senhor não achou que a crítica contida no artigo do Nassif foi fortuita para debater a questão da concessão de bolsas de pesquisa no Brasil?

Jorge Ventura de Morais
Fortuita em que sentido, Pedro?

Pedro Mourão
Pessoalmente, acredito que a crítica que ele fez foi vulgar e propositadamente rasa.
A forma como foi feita a crítica usando meias palavras e meias verdade já demonstrou o calibre do próprio artigo e do autor.
Mas essa discussão teve um lado bom para fazermos uma sociologia da sociologia, no sentido de refletirmos sobre a quem e a que serve a sociologia que fazemos..
Será que podemos fazer uma ciência pela ciência? Como uma arte pela arte?

Jorge Ventura de Morais
Ah, como subproduto do massacre moral? Pode ser!!!... Mas não acho que a concessão de bolsas no Brasil tenha mais problemas do que em outros países. No que respeita às bolsas de pós-graduação, supõe-se que os programas de pós-graduação saibam selecionar seus estudantes e o critério é claro: desempenho acadêmico. No caso das bolsas de pesquisa, cada projeto é avaliado por dois pares e depois vai para classificação dos comitês assessores. O sistema é perfeito? Não, não é de jeito nenhum. Há problemas relativos à distribuição geográfica dos grupos de pesquisa no Brasil, há problemas de grupos que controlam certas áreas. Mas não é o horror que se costuma pensar, mesmo dentro da academia. Tem um nível normal de problemas de qualquer outro sistema de pares pelo mundo afora.
Pedro, ainda vai demorar muito? A família já está cobrando minha !"presença"
           
Pedro Mourão
Não professor. Acho que acabamos.
Eu agradeço imensamente sua disponibilidade e sua boa vontade de se dedicar a essa entrevista.
Quer dizer algo para fechar a entrevista?
Jorge Ventura de Morais
Agradecido também, Pedro, pela possibilidade de eu poder me expressar e pela excelente qualidade das suas perguntas. Agora eu vou esquecer a sociologia e fazer um risoto de cogumelos frescos para Roberta e Clara, esposa e filha, respectivamente. Um abraço.