A Democracia como Valor - A Tópica de Carlos
Nelson Coutinho.
Ubiracy de Souza Braga*
*Sociólogo (UFF), cientista político (UFRJ), doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
“Sem democracia não há socialismo, sem socialismo não há democracia”.
Carlos Nelson Coutinho
Impactou a Academia com seu célebre
artigo publicado na RCB em 1979.
Carlos Nelson Coutinho, Itabuna, 28 de julho
de 1943, Rio de Janeiro, 20 de setembro de 2012, fora um filósofo, teórico
marxista brasileiro, cientista político, tradutor da obra de Antônio Gramsci,
professor universitário, Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É
também Editor das Obras de Antônio Gramsci (Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 10 vols., 1999-2005). Militante do PCB - Partido Comunista do
Brasil por muitos anos, desde a juventude, formou-se em filosofia na
Universidade Federal da Bahia (UFBA), e se dedicou à crítica literária e cultural
nos anos 1960 e 70. Foi militante do PSB, expressão do seu interesse pelo
socialismo democrático, uma vez que o PSB de Carlos Nelson era aquele
histórico, do pós-1945, marcado por figuras como Hermes Lima e João Mangabeira,
do Partido dos Trabalhadores e do Partido Socialismo e Liberdade. Deixa um
legado amplo e sui generis nas áreas
de filosofia, crítica literária e, principalmente
teoria política. É reconhecido internacionalmente, entre poucos, como um dos
maiores especialistas no âmbito do pensamento social e político de Antônio Gramsci.
Em
1961, a revista Ângulos, editada pelo
Centro Acadêmico Ruy Barbosa, da Faculdade de Direito da Universidade da Bahia,
em seus números 16 e 17, publicou dois ensaios escritos por um jovem de
dezessete anos chamado Carlos Nelson Coutinho. Desde então, esse ensaísta vem
marcando presença, com crescente vigor, tanto na vida teórico-política como reflexão
filosófica-cultural da e na sociedade brasileira. E de fato, faz-se
interessante notar que, desde os primeiros passos no campo da reflexão
analítica, que ele fazia uma clara opção pelos dois campos de trabalho aos
quais haveria de se dedicar, ao longo das três décadas subsequentes. O artigo
do n.º 16 de Ângulos se intitulava
“O processo das contradições e a revolução brasileira”. E o artigo do n.º 17
estava dedicado à “Problemática atual da dialética”.
Nos anos 1970, Carlos Nelson Coutinho
(1967; 1968; 1972; 1973; 1974; 1979; 1981; 1984; 1985; 1986a; 1986b; 1987; 1996;
1997; 1998a; 1998b; 1999; 2000; 2003; 2004; 2011) conheceu o exílio em Bolonha
- terra em que se afirmara por décadas o seu amado Partido Comunista Italiano - PCI, outra das referências
político-intelectuais imprescindíveis para entender o nosso autor - e,
posteriormente, em Paris. Foi membro eminente do “grupo de Armênio Guedes”,
que, dentro do PCB, buscava a renovação do nosso comunismo a partir da questão
democrática, vista - a democracia - também como a alternativa mais produtiva
aos caminhos e descaminhos da modernização “prussiana” do capitalismo
brasileiro, que havia conhecido um novo impulso a partir da ditadura implantada
com o golpe político-militar de 1° de abril de 1964.
Neste período, início da década de
1960, lembrava-nos o filósofo Luís Washington Vita, no ensaio Introdução à Filosofia (São Paulo:
Editora Melhoramentos), que o pensamento [social] brasileiro, mais do que
criativo, é assimilativo das ideias alheias, e ao invés de abrir novos rumos,
limita-se a assimilar e a incorporar o que vem de fora. Vejamos:
“no processo de assimilação das ideias alheias, imprimimos as nossas
características, de acordo, aliás, com o velho princípio: tudo o que se recebe
toma a forma do recipiente, ou como certos perfumes que, em contato com a
epiderme, sofrem uma alteração química que lhes afeta a fragrância, e nisso
consiste nossa ´originalidade`” (cf. Vita, 1964: 10).
Daí
a história das ideias serem, em geral, uma história da penetração do pensamento
que vem “de fora para dentro”, e ao invés de abrir novos rumos, limita-se a
assimilar e a incorporar o que vem de fora. Daí a história da filosofia no
Brasil, ser, em geral, uma história da penetração do pensamento alheio nos
recessos de nossa vida especulativa, ser em suma, “a narrativa do grau de
compreensão, da nossa capacidade de assimilação nas diferentes épocas e do
nosso cotidiano de sensibilidade espiritual”. Contudo, o que há de curioso é
que, não devemos perder de vista a circunstância de que tais ideias ao
desembarcarem nas costas marítimas brasileiras, quase sempre passam por
estranha, mas curiosa sorte: “algumas destas atingem nova significação, outras
logo se perdem”. Disto resulta que a história das ideias nas Américas, em
geral, e no Brasil, em particular, adquire grande importância, pois serve para
determinar a sua generalidade, a sua aplicação às atividades humanas e sua
flexibilidade cultural.
Neste
sentido, Carlos Nelson Coutinho se notabilizou, seguindo a trilha aberta pelo
filósofo Washington Vita, já na volta do exílio, através do ensaio: “A
democracia como valor universal” (1979), fortemente inovador na cultura dita comunista,
exatamente por ter como assumida fonte de inspiração o pensamento político
amadurecido em torno do antigo e extraordinário PCI, muito especialmente Enrico
Berlinguer e Pietro Ingrao. Difícil subestimar o papel deste ensaio, sobre o
qual, posteriormente, o próprio autor se voltaria em diferentes ocasiões,
ratificando-o e retificando-o em variados pontos: esta é, precisamente, a
função de um ensaio seminal. A partir deste momento, incorpora-se vigorosamente
à reflexão de Carlos Nelson a presença de Antônio Gramsci: pode-se dizer que, a
partir de uma original articulação de Lukács e Gramsci - isto é, dos problemas
da ontologia do ser social e da política tal como experimentada nos países
“ocidentais” -, tenha se estruturado a produção posterior de Carlos Nelson
Coutinho, até o livro mais recente, De
Rousseau a Gramsci. Ensaios de teoria política, publicado em 2011. Contudo,
CNC afirmara antes, sobre Jean-Jacques Rousseau:
“É através da articulação entre esses dois momentos (ou
"partes") que se forma a totalidade orgânica e unitária da reflexão
política rousseuniana: em minha avaliação, o Contrato deve ser lido como a
proposta - no nível normativo do dever ser-de
uma formação social e política alternativa àquela que aparece no Discurso como
fruto de uma análise que se situa no nível do ser. É porque discorda
profundamente do ser da desigualdade e da opressão, por ele identificado com a societé civile de seu tempo, que
Rousseau propõe o dever ser de uma formação social na qual liberdade e
igualdade se articulem indissociavelmente: a crítica do presente se completa
assim com a proposição de uma utopia alternativa” (cf. Coutinho, 1996).
Neste
aspecto, afirma Coutinho:
“Penso que a contribuição de Gramsci à teoria democrática tem sua
expressão mais destacada no conceito de hegemonia. E penso também que é
precisamente esse conceito o principal ponto de articulação entre as reflexões
gramscianas e alguns dos mais significativos complexos problemáticos da
filosofia política moderna, em particular os que estão contidos nos conceitos
de vontade geral e de contrato. É claro que não pretendo negar a óbvia
vinculação de Gramsci com o marxismo, mas creio que - na construção de sua
teoria da hegemonia - ele dialogou não apenas com Marx e Lenin, ou com
Maquiavel, o que fez explicitamente, mas também com outras grandes figuras da
filosofia política moderna, em particular com Rousseau e com Hegel. Essa
interlocução permitiu a Gramsci resgatar uma dimensão fundamental do enfoque
histórico-materialista da práxis política, nem sempre explicitada por Marx e
Engels, ou seja, a compreensão da política como esfera privilegiada de uma
possível interação consensual intersubjetiva. Ora, ainda que Rousseau não seja
citado muitas vezes na obra de Gramsci, pode-se registrar a presença nessa obra
de muitos temas semelhantes aos abordados pelo autor do Contrato social; penso,
sobretudo, no fato de que há em Gramsci um conceito análogo ao de ´vontade geral`,
central na obra do genebrino, ou seja, o conceito de ´vontade coletiva`,
repetidamente invocado pelo pensador italiano. Quanto a Hegel, trata-se de um
dos autores mais citados por Gramsci, que dele recolhe não apenas o estímulo
inicial para a elaboração do seu específico conceito de ´sociedade civil`, mas
também a noção de ´Estado ético`, com a qual, como vimos, identifica a sua
concepção de ´sociedade regulada` ou comunista” (cf. Coutinho, 2011).
Carlos
Nelson Coutinho foi, desde o início, uma figura de exceção: mergulhou, de corpo
e alma, no universo de Lukács (cf. 1968; 1972; 1973; 1986c), para voltar à tona
em condições de extrair todas as consequências de uma reflexão filosófica
rigorosa, “intransigente”. Ele sempre soube que não se pode fazer filosofia com
a mesma desenvoltura com que se pode fazer uma salada, combinando alfaces com
tomates e batatas, cebolas e pepinos, azeite e vinagre. As ideias não se ajustam
umas às outras com a mesma facilidade com que se juntam os legumes e as
verduras. A busca do conhecimento não trilha os caminhos explorados pela
conquista do sabor, pela produção de efeitos gustativos na arte culinária. O
conhecimento é intrinsecamente totalizante e depende de muito trabalho: a
compreensão de cada aspecto particular depende de uma visão global que seja
capaz de situar o fenômeno no seu contexto; e, ao mesmo tempo, essa visão
global precisa ser sempre revista, reelaborada, como princípio historicista de
autocrítica como ocorrera com o ensaio sobre a “democracia como valor”,
inovando metodologicamente à luz dos
novos aspectos particulares descobertos em cada setor. Essa constante
articulação do todo e da parte exige muito rigor, muita persistência. Não tem
nada a ver com o improviso fácil das saladas.
Com seu marxismo criativo, heterodoxo, transitou
do campo da crítica literária para o campo da teoria política buscando sempre
interpretar a formação social brasileira a partir das categorias de análise de
Marx, Engels, Lenin, Lukács e Gramsci, tendo em vista a transformação da ordem
estabelecida. São exemplares neste sentido os seus ensaios sobre Lima Barreto,
Graciliano Ramos e célebre o ensaio: A
democracia como valor universal, escrito no momento certo e com endereço
certo, sem devolução ao remetente. Responsável pela coordenação e edição da
obra do autor italiano no Brasil, Coutinho é autor de livros fundamentais para
os estudos de teoria política no país, tais como: Georg Lukács. Marxismo e teoria da literatura (Editora Civilização
Brasileira, 1968); El estructuralismo y
la miseria de la razón (México: Ediciones Era,1973), A Democracia como Valor Universal e Outros Ensaios (Salamandra,
1984), Introducción a Gramsci.
(México: Ediciones Era, 1986); Gramsci,
um Estudo sobre Seu Pensamento Político (Editora Civilização Brasileira,
1999), Literatura e ideología en Brasil.
(Havana: Editora Casa de las Américas, 1986); Marxismo e Política: A dualidade dos poderes. (SP: Editora Cortez,
1996), Ler Gramsci, entender a realidade
(Editora Civilização Brasileira, 2003), Antonio
Gramsci, Escritos Políticos (Editora
Civilização Brasileira, 2004), O
marxismo na batalha das ideias (São Paulo: Cortez, 2006), Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento
político (3ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007), Marxismo e política. A dualidade de poderes
e outros ensaios (3ª. ed. São Paulo: Cortez, 2008), Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo (Cortez, 2ª.
ed., 2008) e O estruturalismo e a miséria
da razão (Editora Expressão Popular, 2ª. ed., 2010 [1ª. ed. 1971]). É
também Editor das obras de Antônio Gramsci (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
10 vols., 1999-2005), e nestes dias: De
Rousseau a Gramsci: Ensaios de teoria política (São Paulo: Boitempo
Editorial, 2011).
De acordo com CNC,
“Ora, uma das principais características do conceito gramsciano de
hegemonia é a afirmação de que, numa relação hegemônica, se expressa sempre uma
prioridade da vontade geral sobre a vontade singular ou particular, ou do
interesse comum ou público sobre o interesse individual ou privado; isso se
torna evidente quando Gramsci diz que hegemonia implica uma passagem do momento
´econômico-corporativo` (ou ´egoístico- passional`) para o momento ético-político
(ou universal). Não vou aqui insistir sobre o fato de que essa prioridade do
público sobre o privado, ou o predomínio da ´vontade geral`, é - para além da
definição das necessárias "regras do jogo" - a essência da
democracia, do republicanismo. Essa prioridade, que já é decisiva na definição
aristotélica do ´bom governo`, reaparece com força no pensamento moderno. Em
Rousseau, por exemplo, tal prioridade se torna não apenas uma questão central e
uma tarefa dirigida para o presente, mas aparece também como o critério
decisivo para avaliar a legitimidade de qualquer ordenamento político-social.
Não é casual, assim, que surja em sua obra um conceito fundamental para a
teoria democrática, o conceito de volonté
générale, que não existe na tradição liberal; nessa tradição, temos apenas,
quando muito, o conceito de ´vontade de todos`, entendido - nas palavras do
próprio Rousseau - como soma dos muitos interesses privados ou particulares.
Também na filosofia política de Hegel, outro pensador situado fora da tradição
liberal, o conceito de vontade geral ou universal ocupa um posto central,
tornando-se o fundamento da defesa hegeliana da prioridade do universal sobre o
singular, do público sobre o privado; mas, comparado com Rousseau, Hegel se
distingue por dar uma maior atenção à dimensão da particularidade no mundo
moderno, ou seja, às mediações que intercorrem entre a vontade universal e as
vontades singulares ou individuais” (cf. Coutinho, 2010).
Tese: O
conceito de “revolução passiva”, ou seja, de um processo social de
transformação que se dá “pelo alto”, com exclusão do protagonismo das classes
subalternas (Gramsci), vale como uma luva para momentos essenciais de nossa
formação Histórica, da Independência à mal chamada “Nova República” (1985).
Cabe também lembrar o modo pelo qual A. Gramsci tratava das disparidades
regionais na Itália, do que ele chamava de “a questão meridional”. Para ele,
não se tratava de duas Itálias, já
que o atraso do sul era funcional ao desenvolvimento do norte industrial, tal
como ocorre em nosso país, invertidas as posições geográficas. Finalmente, quem
estudou a história de nossa intelectualidade se surpreende com a pertinência
para nós do conceito gramsciano de “nacional-popular”: tal como na Itália,
também no Brasil os intelectuais caracterizaram-se quase sempre, com honrosas
exceções, “por se manterem distantes do povo-nação”, gerando assim uma cultura
abstratamente cosmopolita e “ornamental”. (cf. Coutinho, 2010).
Escólio:
“Eu nasci em 1943, glorioso ano da
batalha de Stalingrado. Me formei em filosofia na Universidade Federal da
Bahia, um péssimo curso, e com meus 18 ou 19 anos sabia mais do que a maioria
dos professores. Meus pais eram baianos também. Meu pai era advogado e foi
deputado estadual durante três legislaturas da UDN. Publicamente ele não era de
esquerda, mas dentro de casa ele tinha uma posição mais aberta. Eu me tomei
comunista lendo o Manifesto Comunista
que o meu pai tinha na biblioteca. Ele era um homem culto, tinha livros de
poesia. Minha irmã, que é mais velha, disse que eu precisava ler o Manifesto Comunista. Foi um
deslumbramento. Eu devia ter uns 13 ou 14 anos. Aí fiz faculdade de Direito por
dois anos porque era a faculdade onde se fazia política, e eu estava
interessado em fazer política. Me dei conta que uma maneira boa de fazer
política era me tomando intelectual. Aos 17 anos entrei no Partido Comunista
Brasileiro, que naquela época tinha presença. O primeiro ano da faculdade foi
até interessante porque tinha teoria geral do Estado, economia política, mas
quando entrou o negócio de direito penal, direito civil, ai eu vi que não era a
minha e fui fazer filosofia” (Depoimento de Carlos Nelson Coutinho).
No que se refere à introdução de Antônio
Gramsci no Brasil, foi responsável pelas seguintes publicações da obra do
dirigente político italiano: apresentou juntamente com Leandro Konder e
traduziu: Concepção dialética da
história (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966; 6ª. ed., 1986),
selecionou os textos e traduziu Literatura
e vida nacional (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968; 3ª. ed.,
1986) traduziu Os intelectuais e a
organização da cultura (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968; 5ª.
ed., 1987). Vale lembrar que Concepção
dialética da história, Os
intelectuais e a organização da cultura, Literatura e vida nacional junto com Maquiavel, a política e o Estado moderno (esta não traduzida por
Carlos Nelson, mas por Luiz Mário Gazzaneo; Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1968; 8ª. ed., 1987) formam a primeira edição brasileira em quatro
volumes dos Cadernos do cárcere
(1929-1935), um organização temática, simétrica à primeira edição italiana, dos
Quaderni escrito pelo dirigente do
PCI Antônio Gramsci na prisão, durante o regime fascista em Itália. Foi
publicado também na Itália Il pensiero
politico di Gramsci, de Carlos Nelson Coutinho (Milão: Unicopli, 2006), uma
versão revista e atualizada da monografia várias vezes editada no Brasil. A
publicação coincidiu com a do livro de Guido Liguori, Sentieri gramsciani (Roma: Carocci). Os dois livros foram
apresentados em Turim e em Roma, neste mês de maio de 2006. Em Turim, sob o
patrocínio do Departamento de Ciência Política da Universidade turinense,
intervieram na apresentação, além dos autores, Angelo D’Orsi, Chiara Meta e
Marzio Zanantoni. Em Roma, promovida pela IGS–Itália, a apresentação contou com
as intervenções de Roberto Finelli, Giorgio Baratta, Giovana Cavallari e Aldo
Zanardo.
Do ponto de vista etnobiográfico o golpe de Estado de 1964
forçou-o a sair da Bahia e o trouxe para o Rio de Janeiro. Na cidade
maravilhosa, nas duras condições da repressão desencadeada pelo ciclo das
ditaduras militares, o jovem ensaísta passou a combinar o trabalho e a
militância política da resistência com a atividade de escritor: novos ensaios
foram redigidos e reunidos no livro Literatura
e humanismo, como vimos, lançado pela editora Paz e Terra, em 1967. Eram “tempos
sombrios”, na expressão de Hannah Arendt, e o marxismo era estigmatizado como
pensamento demoníaco, comprometido com uma vasta conspiração mundial urdida
pelas forças do mal. Carlos Nelson se empenhou numa demonstração prática
convincente de que o legado de Marx, na pena que o marxista húngaro Lukács o
reassumira, passava por uma clara recuperação dos valores balizados pelo
humanismo e o racionalismo.
No exterior, Carlos Nelson viveu na
Itália, em Portugal e na França. Ficou impressionado com as exigências de
renovação que se manifestavam no chamado “eurocomunismo”. Aprofundou seus
vínculos com o PCI e, relendo Gramsci, extraiu das posições do fundador do PCI
implicações e consequências que iam além do alcance das interpretações feitas
na época em que o havia traduzido para o português. Voltou ao Brasil no final
de 1979, quando já se percebia a chegada da Anistia. Lançou, então, um ensaio
que repercutiu como uma verdadeira “bomba” no pensamento de esquerda
brasileiro: “A democracia como valor universal” (publicado no n.º 9 da revista Encontros com a Civilização Brasileira
e depois incluído no livro: A Democracia
como Valor Universal e outros ensaios, que teve duas edições, uma pela
Livraria Editora Ciências Humanas e outra pela Salamandra). Nesse ensaio - como
notou Francisco Weffort - “um marxista empreendia sobre a questão democrática
uma reflexão mais vigorosa do que aquela que até então vinha sendo feita pelos
liberais”. Fazia uma opção radical pela democracia, que trazia com ela uma
proposta de socialismo necessariamente nova, portanto, capaz de absorver
elementos provenientes da tradição liberal, como a preservação dos direitos e
garantias individuais, o fortalecimento da cidadania, a proteção das minorias,
o pluripartidarismo, o respeito à alternância no poder, etc.
Num artigo escrito para um seminário
internacional realizado em Ferrara, na Itália, e publicado no Brasil pela
revista Presença (n.º 8), com o
título “As categorias de Gramsci e a realidade brasileira”, depois incluído no
volume Gramsci e a América Latina.
(Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1988), Carlos Nelson insistiu na tese de
que a sociedade brasileira, apesar do peso enorme do atraso, já está bastante
“ocidentalizada” em suas condições objetivas, institucionais, porém - no plano
subjetivo - ainda resta um “longo caminho a percorrer na luta pela ampliação da
socialização da política”. Carlos Nelson procurou extrair algumas consequências
dessas constatações no livro A dualidade
de poderes (Ed. Brasiliense, 1985), cujo subtítulo é: “Introdução à teoria
marxista de Estado e revolução”, abrindo um claro debate com o marxismo onde Lênin
discute a teoria marxista em diálogo com os anarquistas, e especialmente
aqueles a que chama de oportunistas, os pensadores e partidos socialistas que
tendiam a uma interpretação de evolução gradual do capitalismo ao socialismo
defendendo os meios parlamentares como legítimos quando não únicos para a luta
do proletariado frente aos capitalistas.
Entre as muitas mensagens de
despedida do bravo pensador marxista, a Editora Boitempo fez publicar, em sua
página, a seguinte mensagem: “Morreu o grande intelectual marxista Carlos
Nelson Coutinho, depois de meses combatendo um câncer dos mais violentos.
Carlito, como era chamado pelos amigos, descobriu a doença em fevereiro deste
ano, quando nos comentou pelo e-mail:
“Ainda estou perplexo, mas disposto a brigar. Também sobre isso, tenho tentado
me valer do mote de Gramsci: pessimismo da inteligência, otimismo da vontade.
Torçam por mim”. Foi o que fizemos esses meses todos. A direção da Escola de
Serviço Social (ESS) da UFRJ, também em sua página eletrônica, deixou nota de
pesar pelo falecimento do Professor Emérito Carlos Nelson Coutinho:
“- É com profunda tristeza que comunicamos o
falecimento na manhã de hoje do nosso querido professor emérito Carlos Nelson
Coutinho, reconhecido dentro e fora do país como um dos mais influentes
pensadores brasileiros do final do século XX e princípio do XXI. Sua atitude de
vanguarda, ao introduzir, na cultura brasileira, o pensamento de dois clássicos
do debate teórico filosófico europeu do século XX, G. Lukács e A. Gramsci, e a
elaboração de uma obra, que tem o selo claro de uma intervenção política na
defesa do socialismo e na renovação do marxismo, o revelam como um dos melhores
produtos do que ele mesmo denominou a “década longa dos anos 60”, conjuntura
que, aberta em 1956, no XX Congresso do PC da URSS e terminada em meado dos
anos 70, favoreceu em meio às agitações de estudantes e trabalhadores em 1968,
o terceiro-mundismo, o eurocomunismo, a Primavera
de Praga os melhores anos de florescimento do marxismo”.
Em primeiro lugar, observara
Coutinho, no ensaio: A Democracia Como
Valor Universal (1979: 33 e ss.) que: a) a questão do vínculo entre
socialismo e democracia marcou sempre, desde o início, o processo de formação
do pensamento marxista; e, b) direta ou indiretamente, esteve na raiz de
inúmeras controvérsias que assinalaram e assinalam a história da evolução desse
pensamento. Além disso, c) a questão do valor universal da democracia está na
base não apenas das polêmicas entre os chamados revisionistas e ortodoxos, na
virada do século 20, mas reaparece igualmente entre os principais
representantes da esquerda marxista na época imediatamente subsequente à
Revolução de Outubro de 1917. E finalmente, d) a concepção que Enrico
Berlinguer sintetizou expressivamente no discurso que pronunciou em Moscou, em
1977, por ocasião do 60° aniversário da Revolução de Outubro:
“A democracia é hoje não apenas o terreno no
qual o adversário de classe é obrigado a retroceder, mas é também o valor
historicamente universal sobre o qual fundar uma original sociedade socialista”.
Em segundo lugar, conclui: Uma prova
dessa universalidade são as acesas polêmicas que têm hoje lugar entre as forças
progressistas brasileiras, envolvendo o significado e o papel pela democracia
em nosso País. Pode-se facilmente constatar, nesse sentido, a presença de
diferentes e até mesmo contraditórias concepções de democracia entre as
correntes que se propõem representar os interesses populares e, em particular,
os das massas trabalhadoras. Trata-se de um fato normal e saudável, contando
que não se perca de vista a necessidade imperiosa de acentuar - na presente
conjuntura - aquilo que une a todos os oposicionistas, ou seja, a luta pela
conquista de um regime de liberdades político-formais que ponha definitivamente
termo ao regime de exceção que, malgrado a fase de transição que se esboça,
ainda domina o nosso País (cf. Coutinho: 1979: 34).
Para Carlos Nelson Coutinho, acerca da forma
de abordagem, entendemos ser a “análise imanente ou estrutural” a via mais
apropriada de acesso ao corpus teórico
Coutiniano, onde as transformações políticas e a modernização econômico-social
do Brasil de tempos em tempos (o que é conjuntural) foram efetuadas no quadro
de uma “via prussiana”, ou seja, através da conciliação entre frações das
classes dominantes, de medidas aplicadas “de cima para baixo”, com a
conservação essencial das relações de produção atrasadas (o latifúndio) e com a
reprodução (ampliada) da dependência ao capitalismo internacional; essas
transformações “pelo alto” tiveram como causa e efeito principais a permanente
tentativa de marginalizar as massas populares não só da vida social em geral,
mas sobretudo do processo de formação das grandes decisões políticas nacionais.
Os principais exemplos são, tanto pontuais como inúmeros:
“quem proclamou nossa Independência política
foi um príncipe português, numa típica manobra “pelo alto”; a classe dominante
do Império foi a mesma da época colonial; quem terminou capitalizando os
resultados da proclamação da República (também ela proclamada “pelo alto”) foi
a velha oligarquia agrária; a Revolução de 1930, apesar de tudo, não passou de
uma “rearrumação” do velho bloco de poder, que cooptou - e, desse modo,
neutralizou e subordinou – alguns setores mais radicais das camadas médias
urbanas; a burguesia industrial floresceu sob a proteção de um regime
bonapartista, o Estado Novo,, que assegurou pela repressão e pela demagogia a
neutralização da classe operária, ao mesmo tempo em que conservava quase
intocado o poder do latifúndio, etc. Mas essa modalidade de “via prussiana”
(Lênin, Lukács) ou de “revolução-restauração” (Gramsci) encontrou seu ponto
mais alto no atual regime militar, que criou as condições políticas para a
implantação em nosso País de uma modalidade dependente (e conciliada com o
latifúndio) de capitalismo monopolista de Estado, radicalizando ao extremo a
velha tendência a excluir tanto dos frutos do progresso quanto das decisões
políticas as grandes massas da população nacional”.
Enfim, quando chegou à Itália, Carlos
Nelson Coutinho pode acompanhar de perto a evolução - que vinha latente desde o
pós-guerra com a política da “via italiana para socialismo” de Palmiro
Togliatti –, do PCI da doutrina do marxismo-leninismo para o chamado
eurocomunismo (uma expressão cunhada pelo jornalista iugoslavo Frani Barbieri,
em um artigo publicado em 26 de junho de 1975). Por demorado, devo me abster de
narrar em detalhe processo tão rico. Mas somente pontuar como síntese que em
1977 o então Secretário Geral do PCI, o histórico dirigente Enrico Berlinguer,
pronunciou na tribuna de uma conferência mundial de partidos comunistas, na
simbólica Moscou, um discurso fundamental de reapreciação/revisão do valor da
democracia na estratégia comunista, cujas palavras principais foram as
seguintes: - “a democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de
classe é obrigado a retroceder, mas também é o valor historicamente universal
sobre o qual fundar uma sociedade socialista”.
São precisamente as palavras do discurso de
Berlinguer que vão inspirar e dar o título a mais famosa intervenção política
de Carlos Nelson Coutinho, o artigo “A democracia como valor universal”. Junto
com Leandro Konder, entre outros, eram intelectuais e militantes do PCB que já
haviam se pronunciado publicamente em 1968 contra a invasão por tanques
soviéticos da (hoje inexistente) Tchecoslováquia, pondo fim à “Primavera de
Praga”. Portanto, já havia internamente avant
la lettre no Brasil uma tendência positiva, da parte de um grupo
minoritário comunista, em relação à recepção das ideias do eurocomunismo. O
cerne das ideias eurocomunistas, que recuperavam elementos de A. Gramsci,
residia na revalorização estratégica do conceito de sociedade civil, resultando
daí, em consequência, uma concepção nova do Estado no âmbito da tradição
marxista italiana. Bibliografia geral consultada:
VITA, Luís Washington, Escorço de Filosofia no Brasil. Coimbra:
Tipografia da “Atlântida”, 1964, pp. 10 e ss.; HEGENBERG, Leônidas, Luís Washington Vita. Introdução à
Filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1964; LUKÁCS, Georg, El asalto a la razón. Barcelona-México,
Grijalbo, 1968; Idem, Per l`ontologia
delVessere sociale. Roma: Riuniti, vol. 2, 1981; ARBIZZANI, Luigi. “Fotostoria
1893-1960”. In: et al., Il sindacato nel
bolognese. Le Camere del Lavoro di Bologna dal 1893 al 1960. Contributi per una
storia sociale. Bologna: Ediesse, 1988, pp. 457-492; Artigo: “Cientista
político Carlos Nelson Coutinho morre aos 70 anos no Rio”. Disponível no site: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/09/cientista-politico-carlos-nelson-coutinho-morre-aos-70-anos-no-rio.html; Entrevista
com Carlos Nelson Coutinho. In: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/; COUTINHO,
Carlos Nelson, Literatura e Humanismo.
Ensaios de crítica marxista. 1ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967;
Idem, Georg Lukács. Marxismo e teoria da
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Católica de São Paulo: PUC/SP, 2012, 193 páginas, entre outros.
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