O gosto musical revela a classe social?
DANILO CASALETTI
De acordo com um estudo feito por um cientista social da Universidade de São Paulo (USP), a preferência por um gênero musical reflete a classe social a qual uma pessoa pertence
SAMBA AUTÊNTICO Paulinho da Viola é considerado um dos grandes expoentes do samba tradicional brasileiro
Em sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo (USP), Fernandes classificou os gêneros populares urbanos em quatro subdivisões: o choro, o samba “tradicional”, o samba dos anos 1980 e o samba dos anos 1990.
De acordo com entrevistas feitas por ele com o público de casas de shows de São Paulo e do Rio de Janeiro, a maioria das pessoas que gostam das produções da década de 1990, denominado de pagode comercial, é jovem, com nível escolar mais baixo e moradores da periferia. O público que aprecia o samba da década de 1980 e nomes como Zeca Pagodinho e Fundo de Quintal é mais heterogêneo, com pessoas de uma faixa etária um pouco maior e que cursaram faculdade. Por fim, o samba tradicional – simbolizado por Paulinho da Viola – e o choro têm um público composto por uma maioria de pessoas com nível superior em boas faculdades, grande consciência política e um bom conhecimento musical.
“Foram os críticos, ao longo dos anos, que formataram esse tipo de divisão por classes sociais”, afirma Fernandes. Para ele, os elementos discursivos utilizados por eles, que escreviam para uma classe média mais intelectualizada, criaram divisões simbólicas do que era ‘bom’ ou ‘ruim’ dentro do samba e do choro. O que os críticos descreveram como músicas de "qualidade", desde o início do século passado, acabou por influenciar o gosto musical de cada classe social. Aquelas que tinham mais acesso às críticas passaram a não gostar dos gêneros considerados ruins. Quem não lia as opiniões dos comentaristas acabou gostando de ouvir essas canções desprezadas. Dessa forma, moldou-se a relação entre o gosto musical e a classe social. Esse processo acontece até hoje, na opinião de Fernandes.
Contexto histórico
Para entender a tese de Fernandes, é preciso olhar para o aspecto histórico dos gêneros e subgêneros do samba e do choro, bem como analisar como a crítica musical brasileira se desenvolveu ao longo dos anos.
De acordo com o cientista social, no final da década de 1920 e início da de 1930, livros escritos por ‘críticos’ como Vagalume e Orestes Barbosa foram fundamentais para definir e organizar os gêneros e subgêneros do samba. Mas, além da nomenclatura, os autores passaram a indicar quais eram, nas suas concepções, os bons e os maus sambistas da época.
“Eram considerados bons ou autênticos, os sambistas que estavam afastados do esquema comercial”, diz o pesquisador. Os críticos valorizam o samba e o choro feitos para a comunidade, com raízes folclóricas. As produções que faziam sucesso nas rádios e atingiam um público maior eram denominadas "inautênticas".
Nas décadas de 1930 e 1940, com Getúlio Vargas e o Estado Novo, o samba deixou de ter um tom popularesco. Segundo Fernandes, as letras foram "higienizadas" e o gênero passou a ser um símbolo do país.
Na década de 1950, intelectuais e músicos como Vinícius de Moraes e Ary Barroso consagraram, com suas opiniões, nomes como Noel Rosa, Cartola e Almirante como sambistas autênticos. Artistas como Cauby Peixoto, Nora Ney e Waldir Azevedo foram taxados como "menores”.
Nos anos 1970, críticos como Sérgio Cabral e Hermínio Bello de Carvallo, segundo Fernandes, continuaram a seguir a mesma linha de pensamento da crítica da década de 1930, dividindo e classificando os sambistas em autênticos e não-autênticos, e sempre escrevendo para uma classe social mais intelectualizada.
Por fim, simbolizando as décadas 1980 e 1990, artistas como Zeca Pagodinho e os grupos de pagodes que dominaram as rádios populares e os programas de TV, apesar de todo o sucesso comercial, não são considerados sambistas autênticos pelos críticos, por misturarem em suas músicas elementos ‘estranhos’ ao samba, como a guitarra, por exemplo.
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