domingo, 28 de novembro de 2010

A Sociologia do Capitão Nascimento: Gás de pimenta para temperar a ordem.

A "Sociologia do Capitão Nascimento", nova ideologia policial encomendada pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, repousa em três pressupostos fundamentais:
1) o narcotráfico é a principal causa da violência no Rio;
2) há uma guerra em curso, no Rio, contra o narcotráfico;
3) numa guerra, todos os meios são válidos, principalmente a tortura e a execução sumária.
Tropa de Elite é uma exposição didático-popular da Sociologia do Capitão Nascimento, cujo objetivo é tornar aceitáveis para as classes médias do país, a massa consumidora que constitui a chamada "opinião pública", os pressupostos 2 e 3. Tornando-os aceitáveis, as conclusões da Sociologia do Capitão Nascimento parecerão justas e corretas. Quem admitir que a polícia do Rio está em guerra com os traficantes, admitirá também a tortura e a execução sumária como métodos válidos. Como os brasileiros são, em geral, partidários da política de "Guerra ao Terror" de George Bush, é natural que se sintam inclinados a apoiar a política de "Guerra ao Tráfico na Favela" implementada pelos empregados pobres do governo dos EUA no terceiro mundo. 
Quanto à veracidade dos fundamentos dessa nova doutrina policial, percebe-se de imediato o seguinte:
i- O primeiro pressuposto é discutível;
ii - O segundo é falso;
iii - O terceiro é discutível.
É dessa ambigüidade das bases da doutrina, além é claro do apelo dramático obtido com a exposição cinematográfica, que decorre a aceitação passiva dela por parte da opinião pública. Enunciada sem o filme, sem o apoio incondicional da mídia, a Sociologia do Capitão Nascimento não passa de uma típica asneira proveniente das mentalidades apodrecidas e corruptas que governam o país. Entretanto, com o apoio do Wagner Moura e do Padilha, com o eco da Veja e de milhões de distantes espectadores, que conhecem a suposta "Guerra do Rio de Janeiro" apenas pelo Jornal Nacional, a doutrina adquiriu numerosos seguidores. Como toda ideologia encomendada pelo Estado, a Sociologia do Capitão Nascimento visa justificar uma política injustificável. Há muito tempo a situação do Rio saiu do controle. Os traficantes e as milícias privadas (formadas por ex-policias, bandidos e oficiais de carreira) governam dezenas ou mesmo centenas de favelas. O Estado perdeu o controle de porções imensas da capital. Milhões de seres humanos vivem sob o regime despótico e insano do crime organizado. Isso não quer dizer, naturalmente, que os bairros da capital que ainda recebem alguma assistência do Estado não estejam também sob um regime igualmente bestial e despótico. Significa apenas que há dois tipos de poderes no Rio de Janeiro dos nossos dias: 1. o poder dos traficantes e das milícias privadas; 2. o poder do Estado. Esses dois poderes estão em conflito. Não porque se odeiem mutuamente, mas porque o poder do crime organizado comete muitos excessos. É desagradável mesmo para a burguesia do Rio (que nutre desejos nada secretos de promover uma limpeza étnico-social com o extermínio em massa dos favelados) ver nos noticiários estrangeiros pessoas sendo queimadas vivas em coletivos. Quando esses excessos são cometidos na favela, tudo bem, não tem importância. Quando pessoas são esquartejadas, mutiladas, torturadas ou queimadas vivas na favela, não há problema. A burguesia não está nem aí. Mas quando a notícia sai no Times ou no Le Monde, ela sente uma espécie de mal estar. Não pelas vítimas ou pelas atrocidades em si, mas porque as ações de suas companhias aéreas na bolsa começam a cair. A indústria do turismo sofre em demasia com os excessos praticados pelos narcotraficantes. 
A morte de um João Hélio ou mesmo a de um pobre como o Jorge Cauã, quando é divulgada na Europa ou nos EUA, causa perdas significativas para os poderosos donos das agências de viagens, redes de hotelaria e turismo. 
Mas é claro que o Governador do Estado do Rio de Janeiro e seu Secretário de Segurança Pública não estão nem um pouco preocupados com o mundo das favelas. O Estado não se importa nem um pouco com o crescimento do crime organizado, pois há milhares de fortes acionistas do crime organizado no interior do Estado. Em certo sentido, o Estado é o crime mais bem organizado que existe. Ele mantém a desigualdade social, ele legaliza a expropriação secular dos oprimidos. Ele assegura o funcionamento regular da escravidão assalariada. É o Estado que garante que 100 milhões vivam na pobreza, dos quais 50 milhões na miséria, enquanto os senhores Joseph & Moise Safra, os Andrade Faria, os Jorge Paulo Lemann, os Antônio Ermírio de Moraes, os Bozano-Simonsen, os Santos Diniz, os Hermam Telles, os Seabra, os Steinbruch, e mais alguns outros, detenham fortunas pessoais que alcancem somadas a extraordinária cifra dos 30 bilhões de dólares! Ora, com todo esse dinheiro, esses senhores desejam aproveitar o Brasil. Eles querem gozar o seu "Paraíso Tropical". Eles querem o Rio de volta para eles. Eles querem os prazeres de Copacabana, Ipanema, Leblon, Zona Sul... De que adianta possuir uma fortuna estimada em bilhões de dólares e levar um balaço na cabeça em um semáforo, disparado por um molequinho de rua armado com um 38? Não adianta nada. Nem todo o dinheiro do mundo vai reconstituir os pedaços da cabeça da ex-senhora Gerdal, que passeava tranqüilamente no Leblon, em sua Mercedes blindada, quando cometeu o erro de deixar o vidro aberto e seus miolos saíram voando. A burguesia quer paz. A burguesia quer tranqüilidade. Ela acumulou enormes fortunas com séculos de esforços árduos das classes exploradas. Ela acumulou fabulosas quantias de dinheiro fazendo do Brasil um dos países mais desiguais do mundo. Séculos de terrível exploração, misérias, escravidão, esforços sobre-humanos extraídos das massas trabalhadoras, séculos de parasitismo social, para acabar assim? Com a cabeça despedaçada por um 38? A burguesia está cansada. Ela cansou disso tudo. Ela não suporta mais as dimensões que a miséria adquiriu. Ela quer o Rio de volta.E ela não quer que seus sócios do morro, ligados à poderosa indústria mundial do tráfico de armas e entorpecentes, cometa excessos diante da opinião pública. Se for na favela, escondido, tudo bem. Mas na frente das câmeras, não! Mas como conseguir a paz num regime de fome, penúrias, privações, sofrimentos, angústias, terror, violência? Como conseguir a paz nessas condições? Com passeatas ridículas? Com campanhas pelo desarmamento?
Nesse ponto, a mentalidade do burguês, embotada pelas cifras dos rendimentos de suas aplicações, chega à seguinte conclusão:"Senta o dedo nessa porra!"É claro, porém, que o burguês não vai ele próprio botar a mão na massa, lógico que não! Ele tem seus empregados.É nessa hora que entram em cena o Governador do Estado, o Secretário de Segurança Pública e a Rede Globo. Eles dizem:"Estamos em guerra. Caveira! Temos que usar todos os meios disponíveis. Precisamos torturar e matar. Antes disso, vamos preparar o terreno. Vamos fazer um filminho. Cinema para o povão. Um filme bem didático, com bastante narração em off que é pro povão entender, principalmente a classe média, que é burra. Vamos fazer um filminho capaz de desumanizar as pessoas. Vamos fazer um filminho capaz de tornar cada imbecil telespectador do Jornal Nacional um apoiador incondicional de nossos conflitos televisivos como o narcotráfico. 
Vamos fazer um filme de tal maneira que as pessoas acreditem que é justo matar e torturar. Vamos transformar nossas tropas de extermínio em 'Tropas de Elite'. Seus executores e torturadores virarão heróis. Assim, a classe média que assiste a 'guerra do Rio' pela TV vai achar que estamos fazendo um bom trabalho de combate ao crime. E, principalmente, conseguiremos deixar os turistas estrangeiros mais tranqüilos. Precisamos mostrar a eles que em breve, se conseguirmos controlar esses animais, o Rio se tornará mais seguro. Caveira neles!" E aí é lógico que sempre tem um Global à disposição. É lógico também que sempre haverá os capitais de uma multinacional como a Miramax à disposição.Foi assim que eles conseguiram difundir a Sociologia do Capitão Nascimento, que é a versão tupinambá da política de "tolerância zero" nova-iorquina, a versão terceiro-mundista das políticas de repressão contra imigrantes dos países europeus, a versão Made In Rede Globo da guerra contra a pobreza travada nos países imperialistas. 
Tropa de Elite é essa merda toda. Mas cuidado.O filme não é propriamente fascista, pois a classe dominante brasileira não deseja o fascismo.A classe dominante brasileira está muito satisfeita com o governo Lula. Afinal, "nunca antes nesse país" os banqueiros ganharam tanto dinheiro! "Nunca antes nesse país" os capitais estrangeiros especulativos foram tão bem remunerados! "Nunca antes nesse país" os usineiros puderam contar com um herói tão abnegado! "Nunca antes nesse país" as companhias aéreas tiveram tantos privilégios, podendo até derrubar aviões à vontade! "Nunca antes nesse país" os corruptos foram tão privilegiados, contando com fantásticas absolvições e com a blindagem concedida pelo próprio Presidente da República! Os pobres favelados do Rio de Janeiro, coadjuvantes involuntários das filmagens da "guerra", perceberão rapidamente a natureza real dessa política. Porque eles perderão ainda muitos Jorge Cauãs, centenas, milhares deles. E para piorar, agora que a execução sumária e a tortura foram legalizadas, essas mortes se tornarão ainda mais dramáticas. A classe média, por sua vez, a prostituta dessa trágica novela, se tornará cada vez mais favorável ao terror, porque ela gosta de ver cenas de combate, de tortura, de repressão. Na TV é tudo muito bonito. A classe média adora! Ela se sente mais segura quando vê um helicóptero disparando contra bandidos desarmados em fuga. Ela adora isso! O único problema é que as ações das Tropas da Elite nas favelas vão aumentar ainda mais a violência. Pois os traficantes não são idiotas como o "Baiano". Eles são poderosos capitalistas como o Fernandinho Beira-Mar, que possui uma fortuna estimada em 40 milhões de dólares. E eles não estão dispostos a perder seus negócios por conta dos desejos de "paz" da burguesia ligada ao setor de turismo. Eis aí em que se resume o conteúdo da "doutrina" do bravo Capitão Nascimento.Não é incrível que o cretiníssimo jornalista da Veja tenha invocado Aristóteles para defender essa merda de filme?


José Luís dos Santos, 31, é jornalista (desempregado).

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