segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Anarquia nos Quadrinhos: A Máscara do Riso

by Voz do Além

[Texto publicado originalmente no Farrazine #17]

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"A anarquia ostenta duas faces. A de Destruidores e a de Criadores. Os Destruidores derrubam impérios, e com os destroços os Criadores erguem Mundos Melhores."
Alan Moore
Londres queima, escreveu Alan Moore numa de suas melhores, mais importantes e mais conhecidas obras: V de Vingança. V foi uma reação natural, pessoal e artística de Moore ao momento político ultraneoliberalista e semi-fascista do governo de Margaret Thatcher, que ia para seu terceiro mandato. O próprio conceito visual de V é uma mostra da linha política que Moore queria transmitir com a revista. Seu símbolo, um "V" pichado sobre um círculo, só precisa ser invertido e receber mais um traço para se transformar numa representação visual da Anarquia. E do aspecto mais urgente de certas teorias anárquicas, aquele que passa por uma revolução popular anti-Estado de sacudir as bases de um país, ele tirou a inspiração para traçar o modus operandi de seu anti-herói mascarado. A Inglaterra distópica de V de Vingança é uma mostra de como o fascismo e todos os seus afluentes ideológicos ditatoriais são coisas que podem surgir de uma forma tão natural que parecem invisíveis.
Michael Haneke, em sua obra-prima A Fita Branca, e Dennis Gansel, em seu petardo cinematográfico A Onda, se puseram a investigar esse aspecto pouco discutido no mundo das artes: a origem do totalitarismo – simplesmente porque é muito mais cômodo fazer filmes com heróis combatendo líderes totalitários. Os dois filmes mostram de forma bem convincente como o totalitarismo possui raízes no próprio ser humano, e não somente em grupos específicos de pessoas. A Onda mostra uma experiência sociológica escolar que acaba resultando num microcosmo de ditadura assustadora. A mensagem é clara: existem os líderes, e existem as massas prontas para serem lideradas, sendo somente necessário alguma espécie de competição ou promessa, um ínfimo "direito de escolha", que o caminho para o totalitarismo está aberto. A Fita Branca é muito mais sucinto e abrangente. Se A Onda é um tsunami, A Fita Branca é como uma maré subindo, lenta, mas aos poucos solapando tudo ao seu redor de modo irremediável. O filme mostra uma vila no interior da Alemanha, às vésperas da I Guerra Mundial, onde as raízes do nazismo parecem estar sendo construídas. E isso ocorre de forma tão "natural", que ao final do filme o espectador se pergunta como as coisas chegaram até ali, e provavelmente assistirá novamente só para comprovar o brilhantismo do diretor ao organizar os eventos.

Se a política fosse um anel – o que, na verdade ela é, dependendo do ângulo em que é analisada – as teorias anárquicas de desestabilização social apresentadas em V de Vingança seriam o ponto de chegada de uma reta traçada à partir do ponto representando o totalitarismo. É o outro exato lado da moeda. V é taxativo, provocativo, e incita a rebeldia do mesmo modo que ver filmes militares incita a disciplina. A obra propõe que a Anarquia é parte integrante de muitos seres humanos, só precisando de certo estímulo, um pavio no sentido de jogá-los na direção certa. A Anarquia não nasceu da elite, da intelectualidade, não nasceu de teorias de gente que sentava a bunda em caros cafés europeus – embora pessoas assim tenham organizado as ideias inerentes a ela.
Implicitamente, V de Vingança parece teorizar que dois dos maiores antagonistas ideológicos – o Fascismo da Ordem, e o Anarquismo da Rebeldia – existem graças aos mesmos estímulos na população, e se baseiam nas mesmas formas de doutrinação, somente em seus resultados é que estão suas diferenças. Isso fica mais ou menos claro quando a vontade de se libertar surgida no povo só começa a ser externada quando V leva adiante sua vingança pessoal. Mas a estrutura narrativa de V de Vingança logo trata de desmistificar essa ilusão aparente. Somos praticamente colocados na pele da aprendiz de V, Evey, e, aos poucos, aprendendo os métodos dele. É um modo interessante de lidar com a questão de construção de idéias e de sermos apresentados a revolução pessoal do sem-rosto V. As personalidades distintas de V e de sua herdeira sintetizam com perfeição as duas faces da anarquia que Alan Moore teorizou no decorrer da obra. Então, mesmo parecendo que o Fascismo e o Anarquismo começam a tomar força na população através dos mesmos estímulos, olhando com mais atenção se percebe que, mesmo nesse aspecto, eles se comportam de forma dicotômica. A Anarquia é como uma árvore crescendo e fortalecendo suas raízes na terra. É tudo feito de dentro pra fora, à partir de um centro – no caso da obra: as ações de V. O Fascismo é justamente o inverso. É como um cerco se fechando, uma armadilha de urso dilacerando uma perna, se espalhando pelo medo e se impondo como uma solução sem dar tempo para ninguém pensar. O Fascismo é a maquinação de um pequeno grupo que acha ser a salvação de alguma coisa. Esse grupo geralmente só precisa de um gatilho para tomar o poder. No nazismo foi o Tratado de Versalhes, no caso de George Bush e sua Lei Patriótica foram os atentados de 11/9, e no caso da Londres governada por Sutler foi uma grande explosão nuclear – Moore, posteriormente disse que foi até ingênuo na construção dessa motivação, ao imaginar que seria necessária uma explosão nuclear como um gatilho para empurrar a Inglaterra na direção do Fascismo.
Após o final destrutivo, em que V completa o que Guy Fawkes não conseguiu, fica a pergunta: tá, a parte destrutiva é fácil, mas o que Evey fará para ajudar reconstruir a Inglaterra após a queda do Fascismo? Como será o governo? Alan Moore, na segunda edição de seu fanzine undeground Dodgem Logic, dá uma mostra de como deveria ser o trabalho dos Criadores após o serviço dos Destruidores estar completo. Em entrevista a edição de literatura da revista Vice, Moore também exemplifica e traça uma forma de como as coisas podem funcionar numa sociedade funcionando nos moldes anárquicos.
"Uma das coisas para a qual eu estarei voltando minha atenção é o princípio da loteria ateniense. Isso basicamente dita que uma questão que precisa ser resolvida em nível nacional ou administrativo, você aponta um júri por loteria. Eles podem vir de qualquer lugar de dentro da cultura e são escolhidos de maneira completamente aleatória. Os prós e os contras do caso são então apresentados para o júri, eles ouvem, debatem e votam. Após a decisão, eles não fazem mais parte do júri. Eles voltam à sociedade, e para a próxima questão outro júri é escolhido. O sistema parece, para mim, se aproximar de algo como a democracia, que é algo que nós não temos nesse momento. (…) Mudando para algo próximo disso, iríamos criar um sistema livre dos muitos abusos do nosso modelo atual de governo. É bem difícil comprar o apoio do povo se você não sabe quem são as pessoas que você deveria estar amaciando. Também seria difícil para o corpo dominante temporário agir em interesse próprio, já que faria mais sentido para eles agirem no interesse da sociedade para a qual eles estariam retornando."
Com certeza essa teorização complementar ao atos de V não caberiam na obra, mas Moore tratou de deixar claro que Evey seria justamente esse elo construtivo que muitos não enxergam na Anarquia, e a simplificam unicamente como uma ideologia punk que pode ser resumida na frase: Não sei do que sou a favor, mas sei do que sou contra. O irônico – e que de certa forma confirma minha teoria que coloca os quadrinhos como a arte pop mais vanguardista e experimental de todas – é que todos esses conceitos foram mastigados quando os Irmãos Wachowski resolveram levar V de Vingança para os cinemas. Apesar de passar longe de ser uma destruição do original – como foi Do Inferno e A Liga Extraordinária, dois exemplos de como detonar uma obra em quadrinhos – o filme trata de amortizar certos conceitos apresentados na revista, principalmente em seu final, que chega a finar descaracterizado graças àquela distribuição de máscaras.
No entanto – o que talvez seja a pior característica do filme – houve um certo hype exacerbado e uma movimentação no sentido de se vender a anarquia como um produto após o filme. Creio que o maior exemplo nesse sentido pode ser visto no site da Amazon, onde podia-se ver a seguinte descrição do produto Máscara de V de Vingança: “Vá em frente e sorria para a câmera. Divirta todos que você encontrar com essa máscara do V de vingança. A máscara é exatamente igual àquela usada por V no filme de ação (…) A máscara é feita de plástico e vem num tamanho padrão. (…) A máscara tem um bigode e um cavanhaque que lembra o histórico Guy Fawkes. Vá em frente, use essa máscara e lidere a revolução, mas, por favor, não acabe na cadeia. As pessoas não deveriam temer seus governos. (…) Imagine-se numa distopia, onde o governo controla cada movimento seu. Toda esperança estava perdida, no entanto uma pessoa, um homem, ousou se levantar e liderar uma revolução inteira sozinho. Seu nome era V, sempre se lembre, lembre-se do cinco de novembro!” Nada pode ser mais destrutivo para a Anarquia quanto servir de produto para o meio capitalista fazer dinheiro, além de servir de meio de consumo para as massas… Isso não aconteceria se a obra ficasse somente nos quadrinhos, que se constituem um fórum muito mais apropriado para a discussão de idéias tão complexas!

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