quinta-feira, 5 de julho de 2012

Normalidade bovina




Autor: Andrei Albuquerque

Podemos nos desvencilhar, aqui, da ladainha sobre o que pode ser considerado como “normalidade”, sendo melhor considerar a que o conceito de normalidade serve; sim, deve haver algum intuito  para que ele seja direta e indiretamente evocado.

          O que parece ser aterrorizante à sociedade moderna é o sujeito que não produz ou consome de forma utilitarista, permanecendo como rebotalho do ideal de desenvolvimento moderno. Em contrapartida, a ciência médica ao esquadrinhar, mapear, o cérebro declara a dificuldade em determinar uma pura “normalidade” no comportamento humano; contudo em nossa era não é necessário ser “normal”, pois o indivíduo que cultive uma certa agitação consumista e o frenesi festivo também será bem aceito; o expansivo adolescente tardio, extemporâneo, e o comprador compulsivo são socialmente aceitos até o ponto no qual gerem ônus ao não pagar a fatura do cartão de crédito. Talvez não seja descabido supor que a “normalidade”, antes  apregoada pelo despeito moralista e pelo recato que animava as boas famílias, passou a ser observada sob princípios  mercadológicos de saúde e bem-estar social que parecem, mais do que nunca, interferir nas relações interpessoais; como se esses princípios  fossem colocados para tentar suprir a falência dos limites na educação e na convivência entre as pessoas; talvez, ainda, o impalpável discurso politicamente correto seja uma tentativa canhestra, trôpega, de resgatar valores  que estariam deturpados.  Eis uma bela tese para se aventar em uma crônica ligeira.

Recordemos que, em nossa pitoresca capital, havia uma  senhora que zanzava tranquilamente pelo shopping usando  maquilagem pesada e um tanto quanto bizarra ao olhar bovino dos transeuntes; decerto que “ a velha do shopping” –– essa era sua alcunha –– transitava tranquilamente consumindo e celebrando as alegrias que um shopping pode proporcionar. Tempos depois a bem intencionada ação de orgãos públicos de saúde mental buscou sanear a imagem de louca  da famigerada “velha do shopping”; fotos foram divulgadas nas quais ela ostentava o aspecto rutilante da normalidade que não incomoda ao olhares alheios. Embora devamos recusar o tentador recurso à especulações sem embasamento, não podemos negar o fato: pouco tempo após o plano de intervenção ––– para sua saúde mental e seu vestuário ––– ter sido aplicado tivemos a notícia de seu fim trágico após se deixar cair de um viaduto na capital da qualidade de vida. 

          Não é surpresa afirmar que o indivíduo procura a psiquiatria, a psicologia e a psicanálise para que essas especialidades garantam sua normalidade sintomática; raramente algum ímpeto “heurístico”, acerca de seu sofrimento subjetivo, move sua queixa até os consultórios. O indivíduo dito “normal”, neurótico, chega sôfrego em busca de garantias de que não está enlouquecendo, pois estranha quando algo do inconsciente irrompe em seu comportamento habitual; a disjunção psíquica entre o que ele deseja  e as demandas alheias, sociais, aparece causando forte incômodo ao pensamento consciente.O desejo e a repetição embaraçosa de situações e relacionamentos malogrados causam sofrimento psíquico deixando o indivíduo, cultor de sua suposta normalidade, meio enlouquecido –– descarrilado. De modo anedótico, o indivíduo neurótico se assemelha ao gato de Cheshire em Alice no país das maravilhas, de Lewis Carrol, pois em um diálogo com Alice esse gato se julga louco apenas por agir de modo oposto ao de um cachorro.  Nesse romance, há a marcante descrição de um mundo com seres fantásticos que habitam uma espécie de realidade alternativa e subversiva.

Também não devemos acreditar que há um limite clínico tênue, volátil, entre a loucura  e outros quadros de sofrimento psíquico, embora haja quadros clínicos de difícil diferenciação diagnóstica. Existem fenômenos psicopatológicos precisos que nos permitem, por exemplo, estabelecer a diferença entre uma esquizofrenia e um quadro de pânico( medo) neurótico, ­––– o que torna o diagnóstico essencial para a condução do tratamento psicanalítico. Em contrapartida, um ilusório conceito de normalidade não figuraria como garantia de diagnóstico nem indicaria algo útil do ponto de vista clínico para a psicanálise. Árduo estabelecer o que é normal em um indivíduo que se constitui de modo único e singular a partir de seu romance familiar e de seu meio social. Para Freud o sujeito que conseguisse, de alguma forma, amar e criar estaria próximo ao que se pode considerar como saudável, porém isso não significa a mera adaptação pragmática, mercadológica, mas sim certa consonância com o desejo inconsciente.

          É  patente o desconforto da sociedade ante os indivíduos que não produzem e consomem ––– verdadeiro estorvo para os ideais de desenvolvimento e prosperidade. Desse modo, o louco, o dependente químico grave, o senil etc formam uma incômoda massa que não combina com adestramento da compulsão consumista e do hedonismo festivo. Então, o indivíduo comum tende a ficar enlouquecido quando passa a não conseguir uivar conforme esse adestramento lhe ensinou e daí corre para os consultórios; no entanto não para tentar trilhar qualquer caminho de seu desejo através de seus dramas, mas para que os trilhos de sua anódina rotina sejam retomados.

          Na novela “ Minha vida “ –– do escritor russo  Anton Tchekhov –– o protagonista Missail não corresponde às expectativas de seu pai que destinava a ele um bom cargo no funcionalismo público russo, no entanto Missail recusa o confortável futuro vislumbrado por seu pai. Porém Missail não demonstra possuir nenhum talento, apenas assume a ocupação de pintor de paredes sequioso por uma vida simples em comunhão com os mais humildes. Após se casar, vai viver na zona rural em uma pequena propriedade, mas além de ser enganado e ofendido pela ignorância dos mujiques termina abandonado por sua esposa. Após o fracasso de sua experiência bucólica, Missail Póloznev deixa o idílio comunitário campestre e voltar a ser pintor de paredes em sua cidade. Surpreendentemente essa novela, de 1896, não nos revela um personagem que se rebela contra a determinação social e a autoridade paterna em prol da busca da realização de seu talento, senão um jovem errante que não se adapta às demandas familiares e sociais ––– um outsider do século XIX. Diferentemente do Wilhelm Meister de Goethe, no qual a personagem busca empreender sua formação estética e humanística para descobrir sua vocação, Missail é um homem desajustado. Livres da tola pretensão de diagnosticar autores e personagens, fiquemos com o inevitável incômodo desta narrativa de Tchekhov que tem o seguinte subtítulo: “ Conto de um provinciano”.

          Entre a normalidade bovina e o frenesi obrigatório, socialmente apreciado, resta o abismado homem moderno ainda mais deprimido e angustiado.

FONTE: 
http://andreiribeiro.blogspot.com.br/2012/06/normalidade-bovina.html?spref=fb


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