Ita-maremoto e a dimensão econômica do discurso político.
Ubiracy de Souza Braga*
“A gente só diz sim ou não no casamento e, ainda assim, às vezes erra” (Itamar Franco, 08.06.2008).
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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
O termo discurso pode também ser definido do ponto de vista lógico. Quando pretendemos significar algo a outro é porque temos a intenção de lhe transmitir um conjunto de informações coerentes - essa coerência é uma condição essencial para que o discurso seja entendido. São as mesmas regras gramaticais utilizadas para dar uma estrutura compreensível ao discurso que simultaneamente funcionam com regras lógicas para estruturar o pensamento. Um discurso político, por exemplo, tem uma estrutura e finalidade muito diferente do discurso econômico, mas politicamente pode operar a dimensão econômica produzindo efeitos sociais específicos em termos de persuasão.
Vale a pena recordar que o fator que projetou Fernando Henrique Cardoso (1971; 1973; 1975; 1994; 2006; 2009) para o primeiro plano da política brasileira não foi a robustez, mas, ao contrário, a extrema debilidade do interregno Itamar Franco, quando este ascendeu à Presidência após o impeachment de Fernando Collor. Zélia Maria Cardoso de Mello foi a primeira e única mulher a ocupar o cargo de ministra da Fazenda, empossada em 15 de março de 1990 na posse do primo Fernando Collor na Presidência e deixou o ministério em 10 de maio de 1991. Zélia foi a mentora intelectual do Plano Collor, adotado pelo então presidente Collor.
Respeitado por sua integridade pessoal, mas aparentemente desorientado quanto aos rumos que deveria seguir na economia, Itamar nomeou Fernando Henrique para o Ministério da Fazenda. Ao fazê-lo, estabeleceu, na prática, um interlúdio parlamentarista, com Fernando Henrique no papel de primeiro-ministro. Filho desse interlúdio, o Plano Real se tornaria o grande cabo eleitoral de Fernando Henrique Cardoso, cuja candidatura presidencial exorcizou em poucas semanas os temores de “turbulência” financeira e política então associados à hipótese de Luís Inácio Lula da Silva e o PT - Partido dos Trabalhadores virem a controlar o governo federal.
Feito presidente Itamar, Fernando Henrique Cardoso acertou em dezenas de pontos importantes, mas errou também em muitos como é natural no fazer política. Em retrospecto, não é difícil concluir que seus piores erros foram o timing das propostas de reforma e a subestimação das dificuldades que iria encontrar no Congresso. Quem quiser entender a situação em que ficamos após as crises asiáticas e a Russa siga este fio condutor - a lentidão das reformas. Siga-o do início ao fim do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso e entenderá por que a moratória de Itamar se transformou, segundo o trocadilho infame, num “ita-maremoto” em que dou nome ao presente artigo.
Seu governo foi marcado positivamente por uma coalizão de partidos políticos com o objetivo de garantir a governabilidade e a estabilidade democrática após o processo de impeachment que mobilizou a sociedade e os crescentes problemas econômicos, como a escalada da inflação. Ainda sobre a dimensão econômica do discurso político, os feitos de Itamar Franco como presidente estão na aprovação do IPMF - Impostos Provisórios sobre Movimentação Financeira que, em 1996, passou a se chamar CPMF - Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira. Em 1993, o governo realizou um plebiscito previsto na Constituição de 1988 para escolher a forma e o sistema de governo brasileiro. O resultado confirmou o regime republicano e o sistema presidencialista.
Em função do controle que exercem sobre vastos e valiosos recursos políticos, os governadores podem influenciar sobremaneira a carreira dos postulantes a cargos eletivos nas Assembleias Legislativas e Câmara dos Deputados. Não se pode esquecer que a capacidade de formulação de políticas públicas pelo Poder Legislativo - seja na esfera nacional seja na esfera estadual - é bastante limitada, em virtude das prerrogativas institucionais que garantem ao chefe do Executivo poderes bastante amplos no que tange à formulação e implementação do orçamento, e o monopólio da iniciativa legislativa em matérias de ordem administrativa, financeira e tributária. A centralidade do Poder Executivo tende a ser ainda maior nos estados relativamente ao nível federal, em virtude do controle exercido pelos governadores sobre o Legislativo e o Judiciário em muitos casos.
De outra parte, no Brasil, a contradição histórica do discurso econômico se dá entre a nossa forte descentralização política e eleitoral, de um lado, e a fragilidade econômico-financeira das unidades federadas, uma vez que muitos estados e municípios são manifestamente inviáveis sob o ponto de vista fiscal, mesmo nos dias de hoje. Então passamos a conviver com este puzzle: a tensão entre o regime federativo e a globalização econômica. No início do século, se algum governador perpetrasse alguma decisão heterônoma, os meios financeiros internacionais só ficariam sabendo dias ou semanas depois, e a resposta deles também levaria semanas para aqui chegar. Nesse ínterim, já teríamos resolvido o problema com a negociação política. O problema, portanto, não era a federação como tal, mas o conservadorismo vigente em nosso sistema político. Agora é diferente. Embora todos já soubéssemos que os nossos fundamentos econômicos e, sobretudo fiscais estavam em situação deplorável, o que mandou uma onda de choque a todo o planeta, em questão de segundos, deu-se com a chamada “moratória mineira”.
Economicamente falando o Plano Real representou um programa brasileiro com o objetivo de estabilização econômica, iniciado oficialmente em 27 de fevereiro de 1994 com a publicação da Medida Provisória - MP nº 434 no Diário Oficial da União. Tal MP instituiu a Unidade Real de Valor (URV), “estabeleceu regras de conversão e uso de valores monetários, iniciou a desindexação da economia, e determinou o lançamento de uma nova moeda, o Real”. O programa foi o mais amplo plano econômico já realizado no Brasil e teve como objetivo principal o controle da hiperinflação que assolava o país. Utilizou-se de diversos instrumentos econômicos e políticos para a redução da inflação que chegou a 46,58% ao mês em junho de 1994, época do lançamento da nova moeda.
A idealização do projeto político, a elaboração das medidas do governo e a execução das reformas econômica e monetária contaram com a contribuição de vários economistas, reunidos pelo então Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. O presidente Itamar Franco autorizou que os trabalhos se dessem de maneira irrestrita e na máxima extensão necessária para o êxito econômico do plano, o que tornou o Ministro da Fazenda no homem mais forte e poderoso de seu governo, e no seu candidato natural à sua sucessão. Assim, Fernando Henrique Cardoso elegeu-se Presidente do Brasil em outubro do mesmo ano. Itamar Franco vivia o interlúdio parlamentarista. E isso serviu para preencher o intervalo entre dois mandatos.
O Real foi a moeda nacional até 1942 quando foi substituído pelo Cruzeiro (moeda). Desde então, foram feitas muitas reformas econômicas das quais nasceram seis novas moedas, a saber: Cruzeiro Novo (1967), Cruzeiro (moeda) (1970), Cruzado (BRC) (1986), Cruzado Novo (1989), Cruzeiro (moeda) (1990) e Cruzeiro Real (1993). O resultado positivo do ponto de vista da hegemonia das frações da classe dominante no Brasil deu-se com o fato de que o Plano Real tem influenciado a política econômica brasileira desde então. Ou seja, o Plano Real mostrou-se nos meses e anos seguintes o plano de estabilização econômica mais eficaz da história política, reduzindo a inflação (objetivo principal), ampliando o poder de compra da população, e remodelando os setores econômicos nacionais. Aqui jaz a moeda que acumulou, de julho de 1965 a junho de 1994, uma inflação de 1,1 quatrilhão por cento. Um descarte de 12 dígitos no período. Caso único no mundo, desde a hiperinflação alemã da década de 1920.
Dono de um temperamento marcado pela defesa das causas nacionalistas, explosões de humor e espontaneidade, Itamar Augusto Cautiero Franco, assumiu o comando do Executivo em 1992, com a renúncia do então presidente Fernando Collor de Mello. Uma das cenas que acompanhou o presidente Itamar por toda a sua vida é a imagem onde o mesmo foi fotografado num palanque acompanhado e de mãos dadas com a bela modelo Lilian Ramos “sem calcinha”. Após desfilar em uma das escolas de samba do Rio de Janeiro, a Unidos do Viradouro, de Niterói durante o Carnaval 1994 ela subiu o palanque. A imagem se tornou um escândalo na época, causando inveja a quaisquer paparazzi, pois a modelo não estava usando roupa íntima. A atriz foi convidada a fazer companhia ao “topetudo” presidente da República.
O problema é que Lilian Ramos, irritada com a calcinha da fantasia carnavalesca, que estaria machucando sua vagina, resolveu tirá-la e vestir-se apenas com um camisetão do carnaval, mas a altura do palanque... O que importa é que durante a gestão política de Itamar Franco, fora o detalhe epigramático, fora implantado o Plano Real, cujo conjunto de medidas garantiu a estabilidade econômica e o controle da inflação no país. Conhecido pelas frases de efeito e opiniões objetivas, Itamar conquistou aliados e adversários ao longo de sua trajetória política. Não poupou antigos colaboradores, como os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Na campanha em 2010 para o Senado, ele reatou com o senador Aécio Neves (PSDB-MG), depois de um período de afastamento.
O nome Itamar, curiosamente, contava ele, remete ao local de seu nascimento. O ex-presidente nasceu em alto-mar, em um navio que ia de Salvador para o Rio de Janeiro, em 28 de junho de 1930. O nome da embarcação, segundo Itamar, era Ita. Ele foi registrado na capital baiana, mas a infância e juventude foram vividas em Juiz de Fora, em Minas Gerais, na companhia da mãe, pois ele não conheceu o pai. Exerceu a Presidência entre 1992 e 1994. Em 1998, Itamar venceu a eleição para o governo de Minas Gerais. Com o fim do mandato, apoiou a campanha de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República e, depois, foi nomeado embaixador do Brasil na Itália, posto que ocupara até 2005. Em 2009, filiou-se ao PPS - Partido Popular Socialista, partido pelo qual foi eleito senador em 2010. Em maio, Itamar recebeu o diagnóstico de leucemia e iniciou o tratamento em São Paulo. Em junho, o estado dele agravou-se após uma pneumonia e foi internado no Hospital Albert Einstein. Pelas informações médicas, Itamar reagiu bem ao primeiro ciclo de quimioterapia.
Do ponto de vista de sua formação, depois de concluir o curso de engenharia civil em Juiz de Fora, o ex-presidente iniciou a carreira política, lançando-se candidato a prefeito e depois a outros cargos. Na ditadura militar (1964-1984), ele se filiou ao então Movimento Democrático Brasileiro (MDB), legenda pela qual foi eleito prefeito da cidade mineira por duas vezes. Em 1975, conquistou o primeiro mandato para o Senado. Em sua carreira, foi eleito mais três vezes para o cargo - incluindo o último mandato. Na década de 1980, entrou no Partido do Movimento Democrático Brasileiro. Oito anos depois, ele foi candidato à vice-presidente da República na chapa de Fernando Collor pelo Partido da Reconstrução Nacional (PRN). Os dois venceram a disputa na primeira eleição direta que ocorreu no Brasil após o período de redemocratização. Contudo, Fernando Collor assumiu o cargo adotando medidas econômicas drásticas e impopulares, como o bloqueio dos saldos das contas bancárias de pessoas físicas e jurídicas. O “confisco”, como ficou conhecida a medida provisória - MP decorreu de uma sugestão da então ministra da economia, Zélia Cardoso de Mello. A gestão de Collor foi marcada por uma série de escândalos e suspeitas de corrupção. As denúncias ganharam força em abril de 1992 quando Pedro Collor, irmão do presidente, revelou a existência do “esquema PC” de tráfico de influência e irregularidades financeiras, organizado por Paulo César Faria então tesoureiro da campanha.
Sobre a sua morte o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso declarou:
“O Brasil perdeu uma grande pessoa. Ele tinha um comportamento ético irretocável. Ele era ameno no trato, mas com suas peculiaridades. No conjunto, foi essencial. Assumiu a Presidência com dignidade. Tivemos uma relação cordial no Senado. Sem o apoio dele, não teria feito o Plano Real. Ele me apoiou até o fim, devo muito a ele e o Brasil deve também. Ele era um homem digno, simples, e não aceitava corrupção”.
Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP), ex-presidente da República, e Dona Marisa Letícia, ex-primeira-dama declararam o seguinte:
“O senador e ex-presidente Itamar Franco foi um grande democrata, com uma vida pública dedicada ao Brasil. Mesmo nos momentos de divergência política mantivemos uma relação de profundo respeito e diálogo. Quando assumiu a presidência em um momento conturbado, em 1992, teve sabedoria para dialogar com toda a sociedade brasileira e ajudou o país a entrar em uma rota positiva na política, na economia e no social. No seu governo implementou o Plano Real, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) e engajou o governo federal no combate à fome, com o apoio a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, junto ao sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. A contribuição de Itamar Franco foi fundamental para a construção coletiva de um país democrático, mais justo e sem pobreza. Nesse momento de tristeza, prestamos solidariedade aos seus familiares e amigos”.
O senador e ex-presidente da República, Fernando Collor de Mello (PTB – AL), afirmou “sentir muitíssimo” sua morte, e ainda com rigor ético,
“Ele foi um companheiro inexcedível durante o período em que militamos juntos na política. Perdeu o Senado e a vida política brasileira, um homem digno, coerente, ético e defensor intransigente de seus ideais”.
O presidente de Portugal, Cavaco Silva, enviou neste domingo à presidente Dilma Rousseff mensagem de condolências pela morte do ex-presidente e senador Itamar Franco (PPS-MG). Na mensagem, ele lamenta a morte de Itamar, acrescentando que o ex-presidente será sempre lembrado como,
“uma das figuras mais marcantes da sua geração, um homem íntegro e de convicções, com uma vida pública dedicada à defesa dos valores da democracia, da justiça e do progresso econômico e social do povo brasileiro. O seu legado inclui ainda uma inestimável contribuição para o aprofundamento das relações entre Portugal e o Brasil, permanecendo viva, entre nós, a memória das suas qualidades humanas e da sua sincera amizade pelo nosso país”.
A presidente Dilma Rousseff ex-officio decretou luto oficial de sete dias pela morte de Itamar Franco e confirmou que participará do velório em Juiz de Fora. Segundo fontes da Presidência da República, Dilma Rousseff telefonou para Henrique Hargreaves, ex-ministro da Casa Civil de Itamar e um dos melhores amigos do senador, oferecendo o Palácio do Planalto para que a família velasse o corpo do ex-presidente. Porém, Hargreaves informou que Itamar havia instruído a família para que seu corpo fosse velado em Juiz de Fora e cremado em Belo Horizonte. “O Itamar sempre dizia que quando morresse não era para ficar com o corpo dele rodando pelo país. Era para mandar direto para o Juiz de Fora”, disse Hargreaves. O presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), organizou uma comitiva de parlamentares para acompanhar as cerimônias de despedida em Minas Gerais. A comitiva deve sair de Brasília na manhã deste domingo.
Bibliografia geral consultada
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LACLAU, Ernesto, Política e Ideologia na Teoria Marxista: capitalismo, fascismo e populismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978;
Artigo: “Minas abala o mundo. A globalização multiplica os poderes de um governador de estado”. Disponível em: http://exame.abril.com.br, 27.010.1999;
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Idem, Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977 (Tese de Doutorado); Idem, Mãos à obra Brasil: proposta de governo. Brasília: s. ed. 1994. 300 págs.;
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Idem, “Confissões de um ex-presidente”. In: Diário do Nordeste. Fortaleza, 24 de abril de 2006 b;
Idem, GAVIRIA, César; ZEDILLO, Ernesto, “Hora de Legalizar? Por que um grupo cada vez maior de políticos - entre eles o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso - defende a legalização do consumo pessoal de maconha”. In: Revista Época. 16 de fevereiro de 2009 entre outros.
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