domingo, 21 de agosto de 2011

Fiódor Dostoiévski e a psicologia de seus personagens.


                                Fiódor Dostoiévski e a psicologia de seus personagens.
                                                                                        Ubiracy de Souza Braga*

“Na verdade, na verdade vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto” (Evangelho segundo João, 12: 24).

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Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).



            Gênio do mal, segundo Máximo Górki. Perigoso, segundo Josef Stálin. Até 1953 o currículo autoritário/totalitário soviético para estudos universitários sobre o escritor o classificava como “expressão da ideologia reacionária burguesa individualista”. Segundo ele mesmo, seu mal era uma doença chamada consciência. O inverno se aproxima de Moscou a passos de neve. Estamos a 30 de novembro de 1821. No hospital Maria, destinado aos pobres da cidade, Maria Feodórovna Netchaiev ouve os primeiros gritos de seu segundo filho - Fiodor Mikhailovitch Dostoievski - cujo destino nem a mãe nem o pai - o doutor Mikhail Andrévitch Dostoievski - seriam capazes de adivinhar naquele momento de angústias e esperanças.
            Além disso, o que está escrito na lápide do túmulo de Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821-1881) em São Petersburgo deu frutos, no âmbito da literatura e da filosofia, a saber: Nietzsche, Sartre, Camus, Kafka, Freud, Proust, e entre nós, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, todos devem tributo ao mestre russo, nascido em Moscou. Epiléptico como Machado de Assis, influenciou o existencialismo, o modernismo literário, a psicologia e a teologia. Foi condenado à morte por ler textos censurados em público, mas teve a pena alterada quando já estava de frente para o pelotão de fuzilamento, sendo então levado à Sibéria para quatro anos de trabalhos forçados.
           Fiódor Dostoiévski foi muito influenciado por tradições folclóricas. Algumas acreditavam que as águas de rios, mares e lagos representavam a fronteira entre “o mundo dos vivos e o mundo dos mortos”. Por conta da influência que arrecadou através dessa cultura – onde o homem está entre a vida e a morte –, as personagens da literatura de Dostoiévski estão constantemente expostas a ocasiões complexas, beirando os limites da razão e da lógica, e os limites que o ser humano é capaz de  realizar diante de problemas
universais; contudo, em geral, suas personagens podem ser classificadas em diferentes categorias: “cristãos humildes e modestos”, “autodestrutivos e niilistas”, “cínicos e libertinos”, “intelectuais rebeldes”, enquanto regidos por ideias e não imperativos sociais ou biológicos. Lembra-nos un passant a “filosofia na alcova: ou os preceptores imorais” (cf. Sade, 1999).
            Embora alguns biógrafos insistam que a primeira “crise” de Dostoiévski aconteceu antes da prisão, às cartas que ele enviou ao irmão deixaram bastante claro que ele só começou a apresentar a doença durante sua prisão. Os estudos médicos nunca chegaram a um acordo sobre a epilepsia de Dostoiévski. Freud afirmou que era uma doença histérica, e não epilepsia. Não só pelas Cartas, mas também pelos testemunhos deixados por seus contemporâneos, podemos perceber que Dostoiévski nunca abandonou a religião Ortodoxa, na qual fora criado, ao contrário da lenda que se formou posteriormente. A partir de Freud, o Inconsciente passa a ser uma instância psíquica com leis próprias, regida pelo imperativo da satisfação e que, a todo o momento, quer irromper na consciência e, para tanto, romper com o recalque.
                                       Fyodor Dostoevsky, fotografado em 1827.

Nele, no inconsciente, estaria tudo aquilo que diz respeito ao próprio sujeito, mas que o eu (a consciência) não pode e na maioria das vezes não quer reconhecer. Enfim, na tentativa de melhor explicar o que vem a ser o Inconsciente em Freud, vos remeto a um trecho da obra de F. Dostoiévski, Memórias do Subsolo:
“Existem nas recordações de todo homem coisas que ele só revela aos seus amigos. Há outras que não revela mesmo aos amigos, mas apenas a si próprio, e assim mesmo em grande segredo. Mas também há, finalmente, coisas que o homem tem medo de desvendar até de si próprio; e, em cada homem honesto, acumula-se um número bastante considerável de coisas do gênero. E acontece até o seguinte: quanto mais honesto é o homem, mais coisas assim ele possui. Pelo menos, eu mesmo só recentemente me decidi a lembrar das minhas aventuras passadas e, até hoje, sempre as contornei com alguma inquietação. Mas agora, que não lembro apenas, mas até mesmo resolvi anotar, agora quero justamente verificar: é possível ser absolutamente franco, pelo menos consigo mesmo, e não temer a verdade integral? Observarei a propósito: Heine afirma que uma autobiografia exata é quase impossível, e que uma pessoa falando de si mesma certamente há de mentir” (Dostoiévski,1962b: 173-174).
            Cabe lembrarmos aqui que, em 1927, Freud juntou à tragédia antiga e ao drama shakespeariano uma terceira vertente: Os Irmãos Karamázov. Segundo ele, o romance de  Dostoiévski “era o mais freudiano dos três”, pois em vez de mostrar um inconsciente disfarçado de destino (como Édipo Rei) ou uma inibição culpada, ele põe em cena, sem máscara alguma, “a própria pulsão assassina, isto é, o caráter universal do desejo parricida”: cada um dos três irmãos, com efeito, é habitado pelo desejo de matar realmente o pai. Quatro facetas Freud distingue na rica, como ele mesmo diz, personalidade de Dostoiévski: “o artista criador, o neurótico, o moralista e o pecador”. Daí o parti pris e a psicologia de seus personagens. Freud irá, então, destrinchar cada uma dessas facetas.
De acordo com ele, o caráter moralista é o aspecto mais facilmente acessível. No entanto, o resultado final das batalhas morais de Dostoiévski não foi lá muito glorioso. Para Freud, depois das mais violentas lutas para reconciliar as exigências “instintuais” do indivíduo com as reivindicações da comunidade, que é muito bem precisa em Carl Schorske (1990), Dostoiévski veio a cair na posição retrógrada de submissão à autoridade temporal e espiritual, de veneração pelo czar e pelo Deus dos Cristãos, e de um estreito nacionalismo russo. Ou seja, quando em O Idiota, o desenrolar da trama cujo tema central recai na problemática do indivíduo puro, superior, que acaba sendo para os demais, numa sociedade corrompida, um idiota, um inadaptado. Ou ainda, quando nos aponta Freud: “Esse é o ponto fraco dessa grande personalidade. Dostoiévski jogou fora a oportunidade de se tornar mestre e libertador da humanidade e se uniu a seus carcereiros. O futuro da civilização humana pouco terá por que lhe agradecer” (Freud, 1928: 182).
            O realismo crítico foi um movimento artístico e cultural que se desenvolveu na segunda metade do século XIX. E como os movimentos sociais são a ação conflitante dos agentes das classes sociais, para lembramos de Alain Touraine, a característica principal deste movimento foi dá-se com a abordagem de temas sociais e um tratamento objetivo da realidade do ser humano. Possuía um forte caráter ideológico, marcado por uma linguagem política e de denúncia dos problemas sociais como, por exemplo, miséria, pobreza, exploração, corrupção entre outros. Com uma linguagem clara, os artistas e escritores realistas iam diretamente ao foco da questão, reagindo, desta forma, ao subjetivismo do romantismo.
Em O Diário de um Escritor, em russo, Dnevnik pisatelya apresenta-nos uma série de artigos iniciados em 1873 e recordou que após concluir Gente Pobre é o primeiro romance de Dostoiévski, escrito em 1846 quando tinha 25 anos e tem como personagens humildes habitantes de São Petersburgo. O livro revela uma impressionante maturidade se considerarmos a idade do autor. Podemos vê-lo como um manifesto da sua concepção de literatura, porque encontramos aqui presentes as especificidades que o distinguiriam ao longo de toda a sua obra. Os problemas sociais diários relacionados com a habitação, a comida e o vestuário. O frio e uma sociedade que escarna dos pobres.  Um livro de Dostoiévski, mais um, com uma feroz crítica social. Provavelmente uma das obras que o mandou para a cadeia siberiana. Não seria um livro de Fiódor se uma feroz carga psicológica não carregasse as personagens, onde os seus passados pessoais se misturam com os seus feitios e reações. Para Federico García Lorca, “o insigne escritor russo, Fedor Dostoiévski, muito mais pai da revolução russa do que Lenine”.
Deu uma cópia para seu amigo Dmitry Grigorovich, que a entregou ao poeta Nikolai Alekseevich Nekrasov. Com a leitura do manuscrito “em voz alta”, ambos ficaram extasiados pela percepção social da obra. Às quatro horas da manhã, foram até Dostoiévski para dizer que seu primeiro romance era uma obra-prima. Nekrasov mais tarde entregou a obra a Bielínski. “Um novo Gogol apareceu!”, disse Nekrasov. “Pra você, os Gogol nascem como cogumelos!”, Bielínski respondeu. Logo depois, porém, o crítico concordaria. Ele estava extasiado com o movimento realista na Europa, e considerou o romance de Dostoiévski como a primeira tentativa do gênero na Rússia. Nas obras em prosa, o realismo atingiu seu ápice na literatura. Os romances realistas são de caráter social e psicológico, abordando temas polêmicos para a sociedade da segunda metade do século XIX.
As instituições sociais são criticadas, assim como a Igreja Católica e a burguesia. Nas obras literárias deste período, os escritores também criticavam “o preconceito, a intolerância e a exploração”. Sempre utilizando uma linguagem direta e objetiva. Podemos citar como importantes obras da passagem do romantismo para o realismo: Comédia Humana de Honoré de Balzac, O Vermelho e o Negro de Stendhal, Carmen de Prosper Merimée e Almas Mortas de Nikolai Gogol. Porém, a obra que marca o início do realismo na literatura é a obra Madame Bovary de Gustave Flaubert. Outras importantes obras são: Os Irmãos Karamazov de Fiódor Dostoiévski, Anna Karenina e Guerra e Paz de Leon Tolstói, Oliver Twist de Charles Dickens, Os Maias e Primo Basílio de Eça de Queiroz, entre os mais lidos e citados.
            Para a compreensão da neurose de Dostoiévski, Freud utiliza a análise do “sujeito do sintoma”, nesse caso da epilepsia. Pois bem, Dostoievski era epilético e, segundo suposição de Freud, os sintomas neuróticos teriam assumido forma epilética a partir do assassinato de seu pai. Aí se torna visível a questão do parricídio; como demonstrado pelo complexo de Édipo, Dostoiévski, talvez como qualquer outra pessoa, teria ao mesmo tempo ódio do pai por vê-lo como rival pelo amor da mãe e identificação com ele através da admiração e desejo de ocupar seu lugar, fundando uma relação ambivalente. O ódio, no entanto, seria reprimido pelo que Freud traz como “temor à castração”, e permaneceria no inconsciente. Quando presente um fator bissexual como constitucional da criança, o amor pelo pai faz com que o menino queira assumir a posição da mãe, porém, para isso a criança seria igualmente castrada, de modo que o medo da castração dessa vez causa um medo também à atitude feminina: um homossexualismo latente.
A repressão do ódio pelo pai e a identificação com ele (por buscarem o mesmo lugar em relação à mãe) fundam o superego. Freud traz o exemplo de que “se o pai for duro, violento e cruel, o superego assume dele esses atributos, e, nas relações entre o ego e ele, a passividade que se imaginava ter sido reprimida é restabelecida”. Há relatos também de que as crises de Dostoievski o levavam a ter sensação de estar morto. Isso é explicado pelo sadismo do superego e a passividade do ego, em forma de punição; Dostoievski desejava de maneira inconsciente assumir a posição do pai, agora o pai está morto e ele “é” o pai. Daí as condições e possibilidades por relacionar Freud à obra de Dostoievski através da ideia de que todos os criminosos - e todo crime se fundamenta na vontade de matar o pai em busca de ser/ter o falo -, e à exceção dos psicóticos (cf. Braga, 2010), têm desejos inconscientes de serem punidos (principalmente através do sentimento de culpa), de modo que todo criminoso neurótico já é castigado por si mesmo, como é demonstrado cabalmente em “Crime e Castigo”.
Crime e Castigo, em russo, Преступле́ние и наказа́ние, Prestuplênie i nakazánie, é um romance publicado em 1866. Narra a história de Rodion Românovitch Raskólnikov, um jovem estudante que comete um assassinato e se vê perseguido por sua incapacidade de continuar sua vida após o delito. O livro/romance se baseia numa visão sobre religião e existencialismo O existencialismo, para sermos breves, é uma doutrina ético-filosófica e literária que destaca a liberdade individual, a responsabilidade e a subjetividade do ser humano. O existencialismo considera cada homem como um ser único que é mestre dos seus atos e do seu destino, portanto, apresenta-se na obra com um foco predominante no tema de atingir salvação por sofrimento, sem deixar de comentar algumas questões do socialismo e niilismo. Os flagrantes traços autobiográficos, como a adoração pela mãe, o vício do jogo (O Jogador) e a fidelidade psicológica, bem como os traços estilísticos do autor, colocaram esta obra, entre as maiores da história da literatura universal e, certamente, junto com Os Irmãos Karamazov, em russo Братья Карамазовы, Brat'ya Karamazovy, garantiram a Dostoiévski a posição de maior escritor russo da história em conjunto com Lev Tolstoy.
O Idiota, em russo, Идиот, é um romance escrito em Florença, entre os anos de 1867 e 1868, pelo escritor. Publicado em 1869, o livro foi muito bem recebido pelos críticos da época. Nele Dostoiévski constrói um dos personagens mais impressionantes de toda literatura mundial, o humanista e epilético Príncipe Míchkin, mescla de Cristo e Dom Quixote. Escrito em meio a crises de epilepsia, perturbações nervosas, viagens e sob a pressão de severas dívidas de jogo, O Idiota é considerado pelo crítico estadunidense Harold Bloom um “Cânone Ocidental”, juntamente com Crime e Castigo e Memórias do Subsolo. As Notas do subterrâneo também traduzido como Memórias do Subsolo ou Notas do Subsolo, em russo, Записки из подполья, Zapíski iz pódpol'ia, é um pequeno romance de Fiódor Dostoiévski. Esta obra é considerada como a primeira obra existencialista do mundo. Apresenta-se como um excerto das memórias de um empregado civil aposentado que vive em São Petersburgo. O livro é dividido em duas partes, e relativamente pequeno quando comparado ao tamanho das outras obras-primas de Dostoiévski.
A narrativa apresenta um homem amargo, isolado, sem nome, chamado geralmente de “Homem subterrâneo”. Este personagem, que não menciona seu nome em nenhum momento, encena na primeira parte do romance, que leva o nome de “O subsolo”, um grande solilóquio com a intenção de “comover” de alguma forma seu leitor. Este leitor é de suma importância que seja detectado na leitura, pois o discurso do narrador é “moldado” por seu receptor, dessa forma o seu solilóquio, na verdade, é uma grande evocação de discursos alheios que são parodiados de uma forma zombeteira e às avessas. A personagem chega a dizer que é um homem mau, ou age como tal, mas que pode ser agradado e visto como uma pessoa de bem.
Essa incapacidade de se livrar do peso moral o aflige. Diz que os homens sanguinários eram cultos e inteligentes, reforçando as ideias de Raskolnikov em Преступле́ние и наказа́ние, Prestuplênie i nakazánie, e que ele mesmo gostaria muito de encontrar um motivo pra dar sentido a sua vida, como os chamados homens de ação. Ele conclui que “o melhor é não fazer nada”. Na segunda parte, nomeada de “A propósito da neve molhada”, há três episódios fascinantes que relatam de uma forma concreta como o nosso anti-herói é encurralado socialmente pelos discursos e ações de uma sociedade despótica. Essa narrativa é exposta com uma visão da consciência do protagonista, num dos melhores exemplos do recurso literário fluxo de consciência.
Enfim, se Soren Kierkegaard não leu Fiódor Dostoiévski, no entanto, poderíamos colocar a seguinte questão: o que ele diria sobre O Idiota? Em que medida a escolha pelo olhar amoroso pode ser pensada como uma forma de morbidez enquanto fuga do real? Kierkegaard entende que:
É algo esquisito que uma pessoa não busque o seu interesse pessoal, é esquisito que não devolva as injúrias; é algo esquisito e embaraçoso que perdoe seus inimigos e quase se preocupe em saber se fez o suficiente em favor de seus inimigos, é esquisito que esta pessoa sempre se coloque na posição errada, jamais onde há vantagens em ser corajoso, altivo, desinteressado: tudo isso é esquisito, afetado e meio maluco, em suma: algo que se pode rir, quando alguém, mesmo sendo mundo está seguro de, como cristão, estar de posse da verdade e da felicidade, tanto aqui quanto lá em cima (cf. Kierkegaard, 2005: 234).
            Dostoiévski estava convencido de que o belo é um ideal e a dificuldade em descrevê-lo emerge em sua obra como uma tarefa infinita, pois “somente uma figura no mundo é positivamente bela: é Cristo, de modo que o fenômeno dessa figura ilimitadamente, infinitamente boa já é em si um milagre infinito”. Sendo assim, definir um traço real da personalidade de Míchkin é um desafio e certamente constitui para a maioria dos leitores o que Kierkegaard denominou o “escândalo”. No entanto, para Dostoiévski o real do artista não é outra coisa que o “real comum”. Em O Idiota a “verdade” emerge como um conhecimento mais amplo da realidade humana. Precisamente porque diante das “realidades” terrenas, Dostoiévski sinaliza que a única possibilidade de demonstrar a fé religioso-política é mediante uma espécie de aspiração idealista.
O príncipe Míchkin é um indivíduo cuja pureza de coração, aos olhos dos demais, parece idiota. Em decorrência de um amor extremamente puro, a humildade emerge como uma espécie de auto-humilhação que se mostra como um estado doentio, ou seja, como alguém desconectado do “real”. Seu olhar transformado pelo amor vê, no agir do outro, o que não pode ser visto pelo olho simplesmente físico, ou seja, somente os olhos da fé trazem à luz o que não é de modo objetivo a verdade. É por isso que o príncipe, em seu olhar transformado, consegue perdoar os “pecados”, pois objetivamente ele não vê o que os outros veem e é justamente por isso que ele perdoa. Seu olhar não é ingênuo e, no entanto, do mesmo modo que ele percebe o pecado, ele já o considera perdoado. Como Kierkegaard nas Obras do Amor, Míchkin nos aponta através de seu olhar amoroso, que não é o conhecimento de uma verdade objetiva que traduz a sua prática amorosa, mas que esse mesmo olhar é capaz de cobrir uma multidão de pecados.
Nestes termos o conhecimento não produz elementos capazes de perceber perfeitamente a ação do outro e, nesse sentido, as possibilidades de interpretação serão sempre fundamentadas em uma decisão. O olhar amoroso se baseia não pelo conhecimento objetivo, mas em uma escolha, pois o pecado mesmo sendo visto é perdoado e, nesse sentido, já não é mais visto. A partir de nosso próprio conhecimento, estamos sempre diante da possibilidade de escolhas, ou seja, tanto podemos ver o outro com um olhar amoroso, percebendo nele boas qualidades, quanto desconfiar e perceber somente a maldade. Kierkegaard compreende que, aos olhos do mundo, aquele que nada descobre em relação à maldade alheia produz uma impressão bastante medíocre. Sob este aspecto, repetidas vezes ele afirma que o amoroso se assemelha a uma criança, se reconhece como tal, e assim deseja permanecer. Nesse sentido, o amoroso, assim como a criança, “não entende o mal e nem quer entender”.
Enfim, no cinema, a obra de Dostoiévski recebeu a adaptação do diretor italiano Luchino Visconti, com Marcello Mastroianni e Maria Schell; Le Notti Bianche (1957), que recebeu o Leão de Prata no Festival de Cinema de Veneza, tem trilha sonora assinada por Nino Rota, compositor preferido de Federico Fellini. A São Petersburgo do século XIX é transportada para uma Livorno construída no Teatro 5 de Cinecittá. O roteiro é assinado por Suso Cecchi d`Amico. A TV brasileira também assistiu a uma adaptação da obra de Dostoiévski; Noites Brancas foi exibida como um caso Especial em 1973, na Rede Globo de Televisão, com o mestre Francisco Cuoco e a saudosa Dina Sfat nos papéis principais, sob a direção genial de Oduvaldo Viana Filho.
Lembramos ainda que o cineasta como Autor é responsável pela leitura que faz, e a partir dela o debate estabelecido não deve girar em torno da fidelidade à obra, uma vez que, felizmente não é possível conceber uma única interpretação para o texto lido. Ipso facto, o cinema, assim como qualquer tipo de arte, inclusive a literatura, é a expressão de um indivíduo, de uma nação e de uma cultura. Os leitores têm visões, valores, ideologias e imaginação singulares, portanto, cabe ao espectador avaliar se o cineasta conseguiu transmitir a sua interpretação particular para o cinema de maneira lúdica, portanto, criativa. Em vista disso, a fidelidade ao original deixa de ser o critério maior de juízo crítico, valendo mais a apreciação do filme como uma sempre renovada experiência. Afinal, além de livro e filme estarem distanciados no tempo e espaço, escritor e cineasta não têm a mesma sensibilidade. E deveriam ter?


Bibliografia geral consultada:
BRAGA, Ubiracy de Souza, “Marcha para gays, passeata para Jesus?” Disponível em: http://www.opovo.com.br/opovo/internacional.html;
Idem, “Por uns velhos vãos motivos, somos cegos e cativos”. Disponível em: http://literaturapolítica.wordpress.com/2010/09/25;
Idem, “Franz Kafka e a figura paterna em Praga”. Disponível em: http://www.oreconcavo.com.br/2011/08/05;
ZWEIG, S. Dostoiewski. Tradução Heitor Moniz. Rio de Janeiro: Guanabara, 1934;
SCHORSKE, Carl Emil, Viena Fin de Siècle. São Paulo: Companhia das Letras, 1990;
DOSTOIÉVSKI, Fiódor M., Os Irmãos Karamázov. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. 1962a;
Idem, Memórias do Subsolo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962b;
Idem, Coração Fraco e outras histórias. Rio de Janeiro: Editorial Presença, 2006;
Idem, Gente Pobre. Rio de Janeiro: Editora 34, 2010;
Retorno do Profeta - um documentário VE Ryzhkov (Rússia, 1994);
Em 2010, diretor Vladimir Khotinenko começou a filmar o filme sobre Dostoiévski multiseries , que foi lançado em 2011 para o aniversário de 190 do nascimento de Dostoiévski. 19 июня 2010 года открылась 181-я станция Московского метрополитена «Достоевская». 19 junho 2010 eu abri a 181 estações de Metro de Moscou “Dostoiévski”. Выход в город осуществляется на Суворовскую площадь, Селезневскую улицу и улицу Дурова. Sair para a cidade realizadas na Praça Suvorov, rua Seleznevskaya e Durova rua Оформление станции: на стенах станции изображены сцены, иллюстрирующие четыре романа Ф. М. ДостоевскогоПреступление и наказание », « Идиот », « Бесы », « Братья Карамазовы »). “Estações de registro: Estação nas paredes com cenas que ilustram os quatro romances de Fyodor Dostoyevsky: “Crime e Castigo”, “Idiota”, “Possessed”, “Os Irmãos Karamazov”;
DOSTOIÉVSKI, Fiódor M.”. Os Melhores Contos de Dostoievski. São Paulo: Círculo do Livro S.A., 1991;
FRANK, Joseph. Dostoiévski: os efeitos da libertação. São Paulo: EDUSP - Editora da Universidade de São Paulo, 2002;
FREUD, Sigmund, (1928) “Dostoiévski e o Parricídio”. In: Obras Completas ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1990. Volume XXI;
Idem, Obras Completas. Madrid: Editorial Biblioteca Neuva, 1972, 3 Volumes;
Idem, Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Ed. Standard; Imago, 1996;
SADE, Marquês de, A filosofia na alcova: ou os preceptores imorais. São Paulo: Iluminuras, 1999;
GARCIA-ROZA, L. A., Acaso e Repetição em psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986 entre outros.



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