sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Os AIE revividos. O “present perfect” de Louis Althusser.


                            Os AIE revividos. O “present perfect” de Louis Althusser.                       

                                                                 Ubiracy de Souza Braga*

É razoável que um sábio apresente uma comunicação perante uma sociedade de sábios (...). Mas sê-lo-ão igualmente uma comunicação filosófica e uma discussão filosófica?” (Althusser, 1970: 11).



_______________
Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).




              Louis Althusser é considerado um dos principais nomes do estruturalismo francês dos anos 1960, juntamente com Claude Lévi-Strauss, na Antropologia, Jacques Lacan, na Psicanálise, Michel Foucault, acerca da “genealogia do saber”, ou Jacques Derrida, do ponto de vista da “metafísica da presença” e outros, como aparece em Elementos de Autocrítica. Porém, entendemos que Althusser não é estruturalista, enquanto aquele que apreende a realidade social como um “conjunto formal de relações”, pois seu pensamento é marcado fortemente por Benedito Spinoza, um dos grandes racionalistas do século XVII, dentro da chamada filosofia Moderna, juntamente com René Descartes e Gottfried Leibniz. Marxista, filiou-se ao PCF em 1948. Foi um filósofo francês de origem argelina como o fora Jean-Paul Sartre. Seu nome nasceu de uma homenagem ao seu tio paterno. Segundo o filósofo, sua mãe pretendia casar-se com esse tio, mas, após a morte deste e apenas em função disso, casou-se com o pai de Althusser. Sem “pai na teoria”, seu nome advém de forma “postiça” no plano psicológico.
Desta forma ele também acreditava ser tratado como um “substituto” do tio falecido pela mãe, ao que ele atribui “um grande dano psicológico”. Após a morte de seu pai, Althusser, sua irmã e sua mãe se mudaram para Marseille, onde ele cresceu. Em 1937 ele se uniu ao Movimento da Juventude Católica representada no “campo afetivo”, pelas ideias de pensadores católicos de esquerda, tais como Jacques Maritain, Emmanuel Mounier e o Padre Lebret tiveram grande acolhida no movimento, ou como no Brasil o padre jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz (1979; 1992; 2006). Althusser fora um aluno brilhante, sendo aceito na prestigiada École Normale Supérieure (ENS) em Paris.
Entretanto, ele não pôde frequentar a Escola, pois estava convocado para a Segunda Guerra Mundial e, como a maioria  dos  soldados  franceses ou de  “colonização Francesa”, como fora o caso de Frantz Fanon; ficou aprisionado em um Arbeitseinsatz im Osten. Althusser acaba sendo prisioneiro permanecendo no “campo de concentração” até o final da guerra, ao contrário dos demais soldados, que fugiram para lutar - motivo pelo qual Althusser se “puniu mais tarde”. Após o fim da guerra, Louis Althusser pôde frequentar a ENS. Entretanto, sua saúde mental e psicológica estava severamente abalada, tendo inclusive recebido a “terapia de eletrochoques” em 1947.
A partir de então, Althusser sofreu de enfermidades periódicas durante o resto de sua vida. A ENS foi aparentemente simpática a sua condição, mal comparando como ocorrera com alguns professores da USP - Universidade de São Paulo, nos anos de chumbo no Brasil, permitindo que ele residisse em seu próprio quarto na enfermaria, onde ele viveu por décadas, exceto em períodos de internação hospitalar. Teve sólida formação marxista entre seus próceres, em conhecidos ensaios tais como: “A Revolução Teórica de Marx”; “A Filosofia como Arma da Revolução”; “Para uma Crítica da Prática Teórica. Resposta a John Lewis”; “Seis Iniciativas Comunistas” e, em coautoria com Etienne Balibar, “Para Ler O Capital”; “Sobre a Ditadura do Proletariado”, entre outros.
Filiou-se ao PCF - Partido Comunista Francês em 1948. Em suas notas intituladas: “Seis iniciativas comunistas” (1977: 3 e ss.), afirma:
Agradezco al Círculo UEC de Filosofía de la Sorbona el haberme invitado a este debate. Se e há dejado en libertad de escoger mi tema.Y he pensado que no había hoy, en Francia, no sólo ya para los comunistas, sino incluso para todos aquellos que quieran acabar con la ditadura de la burguesia, con su explotación, su opresión, su cinismo y sus mentiras, tema más importante que el del XXII Congreso del Partido Comunista Fancés. Presentaré, pues, una serie de breves observaciones sobre la repercusión del XXII Congreso” (Althusser, 1977: 3).
Em seu ensaio - Novos Escritos - La crisis del movimento comunista internacional frente a la teoria marxista (1978) disserta sobre algumas questões da crise da teoria marxista e do movimento Comunista Internacional:
Me siento muy honrado y emocionado de poder hablar ante todos vosotros, gracias a la amable invitación del Colegio de Aparejadores y Arquitectos Técnicos de Catalunha. Es esta la tecera vez que hablo em España. La primera vez fue en Granada, en Pascua del 76. Pronuncié una conferencia sobre si se tenía o no derecho a hablar de la existência de una filosofia marxista. La segunda vez, fue unos días más tarde en Madrid. Pronuncié la misma conferencia. Cada vez hubo varios miles etudiantes. En Granada había demasiada gente para un debate público. Em cambio, en Madrid la disposición del local permitia la discusión, a pesar de la gran cantidad de estudiantes. Se me hicieron preguntas sobre la situación política francesa e española, sobre el abandono de la ditadura del proletariado por el XXII Congreso del partido francês. Contesté a todo, pero tuvo la impresión de que uma gran parte delos oyentes opinaban que mi conferencia era demasiado filosófica y no lo suficiente política” (Althusser, 1978: 9).
Quatro anos depois se tornou professor de Filosofia da Ecole Normale Supérieure. Em 1946 Althusser conheceu Hélène Rytmann, uma revolucionária de origem judaico-lituana, oito anos mais velha. Ela foi sua companheira até 16 de novembro de 1980, “ano em que foi estrangulada pelo próprio Althusser, num surto psicótico”. As exatas circunstâncias do ocorrido não são conhecidas - uns afirmam ter se tratado de um acidente; outros dizem que foi um ato deliberado. Althusser afirma não se lembrar “claramente do fato”, alegando que, “enquanto massageava o pescoço da mulher, descobriu que a tinha matado”. A justiça considerou-o inimputável no momento dos acontecimentos e, em conformidade com a legislação francesa, foi declarado incapaz e inocentado em 1981.
                                             
           Foto: Althusser e Hélène Rytmann
Cinco anos mais tarde, em seu livro L`avenir dure longtemps, Althusser refletiu sobre o fato, pretendendo reivindicar uma espécie de “responsabilidade por seus atos” quando do assassinato, o que gerou um puzzle entre seus correligionários e detratores, sobre tal responsabilidade “ser filosófica ou real”. Althusser não foi preso, mas foi internado no Hospital Psiquiátrico Sainte-Anne, onde permaneceu até 1983. Após esta data, ele se mudou para o norte de Paris, onde viveu de forma reclusa, vendo poucas pessoas e não mais trabalhando, a não ser em sua autobiografia. Louis Althusser morreu de ataque cardíaco em 22 de outubro de 1990, aos 72 anos.
                                          
            No opúsculo “Matei Minha Mulher - a paixão do marxismo: Louis Althusser” (cf. Escobar, 1983: 13 e ss.) na 1ª Cena - “Numa grande sala da Escola Normal Superior (de Paris). Althusser enrolado num cobertor (típico cobertor de manicômio) e próximo ao público. No meio do palco o médico da Escola, o diretor da Escola e mais dois professores comentam agitados o assassínio de Helena por Althusser. Repórteres e fotógrafos esperam sua vez de entrar e entrevistar os responsáveis pela Escola. Dependendo do estudo desta primeira cena se podem fazer estes homens girarem em torno de Althusser. Uma servente também acompanha esta ação”. 
Diretor: “Senhores, ironicamente hoje é o primeiro domingo da primavera. Como todos já sabem, Louis Althusser, professor e secretário geral da École Normale Superieure, assassinou sua mulher, conforme ele mesmo nos disse. Acontecimento ocorrido ainda hoje, pela madrugada, a 16 de novembro de 1980. Tal fato, infelizmente, se deu aqui ao lado, no quarto colocado a sua disposição pela pela direção da Escola. Um dos maiores intelectuais franceses e desde 1948 militante do Partido Comunista Francês, casou com Helena, isto é, senhorita Ruytmann, em 1976, porém já se conheciam desde o fim da segunda grande guerra e juntos estiveram presentes em acontecimentos políticos e intelectuais de todo esse período. O professor Althusser, várias vezes internado em hospitais psiquiátricos, foi prisioneiro do alemães durante cinco anos na segunda guerra e todos sabem que nesse período foi barbaramente torturado. Paciente durante dezenas de anos dou doutor Diatkhine, Althusser tem sido tratado com sais de litium e seu diagnóstico sublinha sua condição de maníaco-depressivo . Oh, senhores, este é um pobre homem e este é um momento doloroso para todos nós na França e no mundo. Luis Althusser se dizia ´um filhos da Argélia` e nasceu em 16 de outubro de 1918 em Birmandreis - uma pequena comuna situada a 10 quilômetros de Arel” (cf. Escobar, 1983: 15).
            Desnecessário dizer, que Benedito de Espinoza (também Bento de Espinoza) foi o primeiro em todos os tempos a suscitar o problema do ler, e, por conseguinte do escrever, tenha sido também o primeiro no mundo a propor simultaneamente uma teoria da história e uma filosofia da opacidade do imediato; que nele pela primeira vez no mundo um homem tenha ligado a essência do ler e a essência da história numa teoria da diferença entre o imaginário e o verdadeiro - eis o que nos faz compreender por que é por uma razão necessária que Marx só pôde se tornar Marx fundando uma teoria da história e uma filosofia da distinção histórica entre a ideologia e a ciência e que em última análise essa fundação se tenha consumado na dissipação do que se chama “mito religioso da leitura”.    
            Louis Althusser em Lire le Capital (1975) afirma que por mais paradoxal que possa parecer a expressão “o que é ler”?, é possível afirmar que na cultura da história humana nosso presente corre o risco de aparecer um dia como que assinalado pela provação mais dramática e mais laboriosa possível: a descoberta e o aprendizado do sentido dos atos mais “simples” da existência: ver, escutar, falar, ler. Não é à psicologia que devemos estes conceitos perturbadores, mas a homens como Marx, Nietzsche e Freud. Depois de Freud é que começamos a suspeitar do quer-dizer o escutar, e, portanto o falar (e o calar) e o que quer-dizer do falar e do escutar revela, sob a inocência do falar e do escutar, a profundidade de uma fala inteiramente diversa, a fala do inconsciente.
Para Althusser, ou Foucault, desde Marx, deveríamos começar a suspeitar do que, pelo menos em teoria, ler e, portanto escrever “quer dizer” (veut-dire). Isto porque podemos justamente apreender nele, não somente no que ele diz, mas no que faz, a própria passagem de uma primeira ideia e prática de leitura a uma nova prática de leitura e a uma teoria da história capaz de nos fornecer uma nova teoria do ler. E melhor, “deixar que se diga” implica que se renunciou ao projeto de deter, em qualquer nível que seja, o que o texto “quer dizer” ou “queria dizer”. Ou, melhor, enquanto a Representação acredita falar-sobre, essa fala sempre é situável no desenvolvimento daquilo “que se fala”. Ou ainda, que é que se dizia, portanto, no que era dito? Ou ainda a possibilidade do dito: no que é que aquilo que era dito era fatalmente (mal)dito, pelo fato de que ele era expresso?
            Daí, toda a fragilidade no sistema dos conceitos, que constitui o conhecimento, reduzir-se à fraqueza psicológica do “ver”. E se são as omissões do ver que explicam os seus equívocos, do mesmo modo, por uma necessidade peculiar, será a acuidade do “ver” o que há a explicar suas visões: de todos os conhecimentos reconhecidos. Ou seja, atingimos assim a compreensão da determinação do visível como visível, e conjuntamente do invisível como invisível, e do vínculo orgânico que une o invisível ao visível. Assim, é visível todo objeto ou problema que se situa no terreno, e no horizonte, isto é, no campo estruturado definido da problemática teórica de determinada disciplina teórica. Impõe-se-nos tomar essas palavras ao pé da letra. Alguns autores ajudam-nos a elucidar esses termos.
A visão já não é então o fato de uma pessoa individual, dotada da faculdade de “ver” a qual é exercida quer da atenção, quer da distração; a vista é o fato de suas condições estruturais, a vista é a relação de reflexão imanente do campo da problemática sobre seus objetos e seus problemas. A visão perde então seus privilégios religiosos da “leitura sagrada”: ela nada mais é que a reflexão da necessidade imanente que liga o objeto ou o problema às suas condições de existência, que têm a ver com as condições de sua produção. A rigor, não é mais o olho (olho do espírito) de uma pessoa que vê o que existe no campo definido por uma problemática teórica: é esse próprio campo que se vê nos objetos ou nos problemas que ele define, sendo a visão apenas a reflexão necessária do campo em seus objetos.
Na linguagem teórica, as palavras e expressões funcionam como conceitos teóricos, mas em sua periodização histórica as palavras e expressões funcionam sempre de forma distinta, porque se referem a concepção de uma teoria da história. A dificuldade própria da terminologia teórica consiste, pois, em que, por detrás do significado usual da palavra, é preciso sempre discernir o seu significado conceptual, que é sempre diferente do significado usual corrente nas fontes, nas atas, nos documentos oficiais etc. Na sua significação mais geral deve nos permitir a compreensão que tem por efeito o conhecimento de um objeto, a saber: a narrativa da história. É assim que a história abstrata ou a história em geral não existem, no sentido exato do termo, mas apenas a história real, ou “como efetivamente ocorreu” (essen Sie tatsächlich, es passierte), desses objetos concretos e singulares que enformam a experiência acumulada da humanidade.
            Diversas posições teóricas de Louis Althusser permaneceram muito influentes na filosofia marxista: “Réponse a John Lewis”; “Elements d`Autocritique”; “Soutenance d`Amiens”. Contudo, é precisamente no ensaio Sur le jeune Marx, constante no volume Pour Marx, que faz uso de um termo do filósofo da ciência Gaston Bachelard (1932; 1963; 1966) ao propor um “coupure épistémologique” entre os escritos do jovem Marx, inspirados em G. H. F. Hegel e Ludwig Feuerbach, e seus textos posteriores, propriamente marxistas (cf. Althusser, 1967; 1970a; 1970b; 1977; 1978; 1979; 1980). Seu ensaio Marxisme et Humanisme, também contido em Pour Marx, representa uma forte afirmação de “anti-humanismo na teoria marxista”, condenando ideias como o “potencial humano” e o “ser-da-espécie” (Gattungswesen), que são frequentemente apresentadas por marxistas “como uma superação da ideologia burguesa de humanidade”. No ensaio Contradiction et surdétermination, Althusser usa o conceito de “sobredeterminação”, oriundo da psicanálise (uberdeterminierung), a fim de substituir a ideia de “contradição” por um modelo mais complexo de “casualidade múltipla”, em situações políticas o que o aproxima do conceito de hegemonia de Antônio Gramsci. Como é sabido,
sus argumentos y tesis se establecieron en contra de la influencia del empirismo y el humanismo en la teoría marxista. Para Althusser, el marxismo es una ciencia (cuyo contenido científico es el continente de la historia) nacida en el momento en que Marx abandonó el hegelianismo y el humanismo y planteó la historia como la lucha de clases que promueve el cambio social. En este cambio consiste la ruptura epistemológica del marxismo”.
            Ou, como se refere Maria-Antonietta Macciocchi, em Pour Gramsci (1974: 177 e ss):
Le moment idéologique, ou moment éthic-politique, marque le passage, que Gramsci appelle ´catharis`, de la phase econômico-politique, de la phase infrastructurelle doinante à la phase idéologique, superstructurelle. ´On peut utilize le teme de ´catharsis` pour indiquer le passage dumoment purement économique (ou égoiste-passionnel) au moment éthico-politique, c`est-à-dire à l`élaboration supérieure de l`infrastructure em superstructure dans la conscience de hommes, à partir de l`infrastructure. Cela  represente également le passage de l`objectif et de la necessite à la liberté. L`infrastructure, de contrainte externe, qui ipprime l`homme, l`assimile à ele et le condamne à la passivité, se transforme en moyen de liberte, instrument servant à forger une nouvelle forme éthico-politique, source d`initiatives nouvelles. La détermination dumoment ´cathartique` devient auusi, me semble-t-il, le point de depart de toute la philosophie de al praxis…” (Macciocchi, 1974: 177-178).   
Do ponto de vista de L. Althusser, sua principal tese é o “anti-humanismo teórico” que consiste em afirmar a primazia da luta de classes e criticar a individualidade como produto da ideologia burguesa. Sua fama se deve também ao fato de ter precisado o termo “Aparelhos Ideológicos de Estado” - AIE e analisado a ideologia como espécie de prática em toda e qualquer sociedade, e não como no âmbito do marxismo vulgar como: “falsidade”, “verdade”, “erro” ou “engano” que o suposto Iluminismo eliminaria. Uma excelente, mas incompleta biografia foi publicada em francês por Yan Moulier-Boutang. Talvez a melhor apresentação de sua obra em inglês tenha sido feita por Gregory Elliot.
E de fato Althusser é amplamente conhecido como um “teórico das ideologias” (cf. Hall, “et alii”, 1980), e seu ensaio mais conhecido é Idéologie et appareils idéologiques d'état (Notes pour une recherche). O ensaio estabelece seu conceito de ideologia, também originário do conceito gramsciano de hegemonia. A teoria da hegemonia de A. Gramsci está ligada à sua concepção do Estado capitalista, que, segundo afirma, exerce o poder tanto mediante a força quanto o consentimento. Ao passo que a hegemonia é determinada, em última análise, para L. Althusser, por forças políticas, a ideologia se deriva dos conceitos do Inconsciente e da “fase do espelho” (de Freud e Lacan, respectivamente), e descreve as estruturas e sistemas que permitem um conceito significativo do Eu. Estas estruturas, para Althusser, são tanto agentes de repressão quanto são inevitáveis - é impossível escapar das ideologias ou não ser-lhes subjugado. A distinção entre ideologia e ciência, ou filosofia, não é assegurada em definitivo pela “ruptura epistemológica” (“coupure épistémologique”), pois esta ruptura não é um evento determinado cronologicamente, mas sim um processo. Ao invés de uma vitória assegurada, tem-se uma luta contínua contra a ideologia: “A ideologia não tem história”.
A tradição marxista concebe o Estado como um “aparelho repressivo”, uma “máquina de repressão”, ou, “comitê executivo da classe dominante” (cf. Marx e Engels, 1998) que permite às classes dominantes assegurar a sua dominação sobre a classe operária, extorquindo desta última a mais-valia. O Estado é, antes de tudo, o “Aparelho de Estado”, termo que compreende não somente o “aparelho especializado”, mas também o exército (que intervém como força repressiva de apoio em última instância), o Chefe de Estado, o Governo e a Administração, definindo “o Estado como força de execução e de intervenção repressiva” a serviço das frações da classe dominante.
A rejeição hegeliana parte da própria negação de estruturas hegelianas em Marx, onde a totalidade expressiva de Hegel cede lugar, na proposta althusseriana, ao “todo-estruturado”. É um todo “sobredeterminado” (uberdeterminierung) com níveis de análise e instâncias relativamente autônomas: na configuração social há, diferente da lógica dialética, “todos parciais”, sem prioridade de um “centro”. Em nível de análise do econômico opera-se a rejeição da “unicausalidade econômica” da história e das lutas sociais atribuindo-se a instâncias, até então determinadas do discurso marxista (como o político e ideológico), o peso de instâncias decisivas, dominantes em ser determinantes.
Esta renovação na explicação marxista dos processos sociais “superou” efetivamente os extremismos de se imputar invariavelmente a “causa econômica” a todos os acontecimentos sociais e políticos, negando-se a realidade dos fatos sociais ou invertendo-se a sua lógica. A rejeição da totalidade expressiva hegeliana, que nos marxistas anteriores significava “determinação e dominância” do econômico, ganha assim estatuto teórico e respeitabilidade na análise social. Althusser satisfaz, nesse caso, o problema do político dominando historicamente sobre (às vezes até contra) o econômico na sociedade. Isto é importante do ponto de vista analítico e opera uma distinção no âmbito da formação de uma Teoria das Ideologias.
Ipso facto Althusser é amplamente conhecido como um “teórico das ideologias”, e seu ensaio mais conhecido é Idéologie et appareils idéologiques d'état. O ensaio estabelece: a) seu conceito de ideologia, e, b) que relaciona o marxismo com a psicanálise. A ideologia, para ele, deriva dos conceitos do inconsciente e da “fase do espelho” (de Freud e Lacan, respectivamente), e, c) descreve as estruturas e sistemas que permitem um conceito significativo do Eu. Estas estruturas, para Althusser, são tanto agentes de repressão quanto são inevitáveis - é impossível escapar das ideologias ou não ser-lhes subjugado. A ideologia, para Althusser, é a relação imaginária do homem com a suas condições de existência, portanto, sendo transformada em práticas, reproduzindo as relações de produção vigentes. Na realização ideológica, a) a interpelação, b) o reconhecimento, c) a sujeição e d) os Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE), são quatro categorias básicas. Portanto, em seu discurso sobre a Ideologia é patente sua preocupação em encontrar o lugar da “submissão espontânea”, o seu funcionamento e suas consequências para o movimento social, conforme a representação abaixo.
                                      
Para ele, a “dominação burguesa” só se estabiliza pela autonomia dos aparelhos (de produção e reprodução) isolados. O mito do Estado, como entidade incorporada pelos cidadãos e como instituição “acima da sociedade”, aparece também no estruturalismo marxista de Althusser sob a forma de “a instituição além das classes e soberana”. Assim os Aparelhos Ideológicos do Estado são a espinha dorsal de sua teoria. É a partir daí que se constrói uma visão monolítica e acabada de organização social, onde tudo é rigidamente organizado, planejado e definido pelo Estado, de tal sorte que não sobra mais nada para os cidadãos. Não há mais nenhuma alternativa a não ser a resignação ante o Estado onipresente e absolutamente dominante.
A visão aparentemente simplista dos aparelhos ideológicos como “meros agentes para garantir o desempenho do Estado e da ideologia” atraiu para Althusser as frequentes críticas de funcionalismo de Robert K. Merton à Niklas Luhmann. Isto se deve ao fato de que ele não inclui nas suas preocupações, questionamentos sobre o surgimento desses aparelhos ideológicos e sobre sua lógica, conforme a época. Não há a noção de continuidade histórica e cada fase é uma fase “em si”, no sentido hegeliano, dentro da qual as diferentes instituições se articulam, sempre de forma relativa. Assim a igreja - ou a religião -, por exemplo, não é o resultado de uma sedimentação histórico-cultural de ideias e visões do mundo, trabalho de séculos dos organizadores da cultura; não, a igreja é a instituição e seu funcionamento só é captado dentro da lógica respectiva do momento analisado. A dimensão da “tradição de todas as gerações mortas que oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos” (Marx) desaparece.
Os clássicos do marxismo foram os representantes de um conjunto de ideias filosóficas, econômicas, políticas e sociais elaboradas primariamente por Karl Marx e Friedrich Engels e desenvolvidas mais tarde por outros analistas, como por exemplo, Jon Elster (1989). Em sua prática política, trataram do Estado como uma realidade “mais complexa” do que a definição da teoria marxista do Estado em sua progênie; porém, não a exprimiram numa teoria correspondente. Antônio Gramsci também o fez: para ele, o Estado não se resumia ao Aparelho (repressivo) de Estado, compreendendo também certo número de instituições da sociedade civil. Entretanto, Gramsci não sistematizou suas intuições, que permaneceram no estado de anotações. Na teoria marxista, o Aparelho (repressivo) de Estado compreende o governo, a administração, o exército, a polícia, os tribunais, as prisões, etc. Repressivo porque o Aparelho de Estado em questão funciona através da violência (física ou não, como a violência administrativa), pelo menos em situações limite.
O Aparelho Repressivo de Estado funciona predominantemente através da violência e secundariamente através da ideologia, enquanto que os Aparelhos Ideológicos de Estado funcionam predominantemente através da ideologia e secundariamente através da violência, seja ela atenuada, dissimulada ou simbólica. Os Aparelhos Ideológicos de Estado moldam por métodos próprios de sanções, exclusões e seleções não apenas seus funcionários, como também as suas ovelhas. Embora diferente, constantemente combinam suas forças. Apesar de sua aparência dispersa, os Aparelhos Ideológicos de Estado funcionam todos predominantemente através da ideologia, que é unificada sob a ideologia da classe dominante. Então, além de deter o poder do Estado e, consequentemente, dispor do Aparelho (repressivo) de Estado, a classe dominante também é ativa nos Aparelhos Ideológicos de Estado.
De fato, nenhuma classe social pode, de forma duradoura, deter o poder do Estado sem exercer sua hegemonia sobre e nos Aparelhos Ideológicos de Estado simultaneamente. Comprovando sua afirmação, Althusser alerta para a preocupação de Lênin em revolucionar, entre outros, o Aparelho Ideológico de Estado escolar, de modo a permitir ao proletariado soviético que se apropriara do poder garantir o próprio futuro da ditadura do proletariado e a passagem para o socialismo. A partir dessa afirmação, pode-se concluir que os AIE são meios e também lugar da luta de classes, pois neles a classe no poder não dita tão facilmente a lei quanto no Aparelho (repressivo) de Estado e também porque a resistência das classes exploradas pode neles encontrar formas de se expressar. Assim, de forma bastante resumida, distingue-se o poder de Estado do Aparelho de Estado, o qual compreende dois corpos: a) o corpo das instituições que constituem o Aparelho Repressivo do Estado e, b) o corpo das instituições que representam a unidade dos Aparelhos Ideológicos de Estado. Atualmente, todo Aparelho Ideológico de Estado concorre - cada um da maneira que lhe é própria - para um mesmo fim, que é a reprodução das relações de produção, isto é, das relações de exploração capitalista no mundo globalizado.
Historicamente falando o número dos AIE era maior, sendo a Igreja o dominante, reunindo funções religiosas, escolares, de informação e de cultura. A revolução clássica Francesa resultou não apenas na transferência do poder do Estado para a burguesia capitalista comercial, resultando também no ataque ao Aparelho Ideológico de Estado número um - a Igreja -, substituída em seu papel dominante pelo Aparelho Ideológico de Estado escolar. Na verdade, enquanto o Aparelho Ideológico de Estado político ocupava o primeiro plano no palco, na coxia o Aparelho Ideológico de Estado escolar foi estabelecido como dominante pela burguesia. A escola se encarrega das crianças desde a mais tenra idade, inculcando nelas os saberes contidos da ideologia dominante, como a língua materna, a literatura, a matemática, a ciência, a história etc. ou simplesmente a ideologia dominante em estágio puro, como a moral, educação cívica, filosofia. E nenhum outro AIE dispõe de uma audiência obrigatória por tanto tempo precisamente no período em que o indivíduo é mais vulnerável, estando espremido entre o Aparelho Ideológico de Estado familiar e o Aparelho Ideológico de Estado escolar.
Segundo Althusser, raros são os professores que se posicionam contra a ideologia, contra o sistema e contra as práticas que os aprisionam. A maioria nem sequer suspeita do trabalho que o sistema escolar os obriga a fazer ou, o que é ainda pior, põem todo o seu empenho e engenhosidade em fazê-lo de acordo com a última orientação (os métodos novos). Eles questionam tão pouco que pelo próprio devotamento contribuem para manter e alimentar essa representação ideológica da escola, que hoje “faz da Escola algo tão natural e indispensável quanto era a Igreja no passado”. Althusser tradicionalmente se afirmava como marxista, mas seu modo de pensar a educação também pode ser enquadrado na perspectiva “funcionalista-durkheimiana”, já que em Althusser a educação tem um papel tão fundamental quanto em Durkheim. Mas enquanto este último analisa a conservação do “equilíbrio social”, Althusser busca a ruptura, a revolução. Para Althusser, o papel da educação e suas operações são determinados “fora dela”, na base econômica da sociedade - perspectiva um tanto próxima a da de Pierre Bourdieu embora este último tenha incluído a especificidade da reprodução do “capital simbólico”, mas que não trataremos agora.
Curiosamente, afirma Escobar: “É necessário que se saiba, e mais do que isso que se diga, que a ´Questão Althusser` não é dominante, entre nós, uma questão teórica, mas, sobretudo uma questão política”. Essa frase contida no artigo de Carlos Henrique Escobar, publicado na revista Leia Livros em junho de 1979, expressa bem o contexto no qual a obra de Louis Althusser repercutiu na formação social brasileira entre a segunda metade dos anos 1960 e o início dos anos 1980. Nessa conjuntura, Louis Althusser, juntamente com Antônio Gramsci, foi o filósofo marxista mais traduzido e publicado no Brasil, além de ter sido o principal alvo de diversas análises contrárias e contraditórias, como no caso do filósofo Leandro Konder, a partir da década de 1980 à sua teoria (cf. Konder, 1988). Curiosamente em seu livro “Em torno de Marx” (Boitempo, 2010; 133 páginas) na segunda parte, intitulada – “A Herança de Marx”, o autor analisa Adorno, Benjamin, Marcuse, Sartre, Lukács, Gramsci. Talvez tenha sido mal empregado a palavra herança.
Enfim, o artigo de Escobar demarca explicitamente sobre quem e quais foram às instituições que se opuseram à obra de Louis Althusser desde o início de sua inserção ao cenário intelectual brasileiro. Essa oposição encontrava-se tanto nos intelectuais vinculados ao PCB - Partido Comunista do Brasil, fundado em 1922, de matriz teórica lukacsiana, como Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, por exemplo, e também parte da intelectualidade paulista vinculada ao eixo USP-CEBRAP, especialmente nos trabalhos de Fernando Henrique Cardoso e José Arthur Giannotti, ambos citados no ensaio de Escobar. Curiosamente, o filósofo marxista Leandro Konder em seu recente ensaio: Em torno de Marx (São Paulo: Boitempo, 2010: 133 páginas), inegavelmente, “navegando como um mestre da filosofia política à crítica literária”, não por acaso, na segunda parte do ensaio intitulada: “A Herança de Marx”, destaca o pensamento de Theodor Adorno, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Jean-Paul Sartre, Gyorgy Lukács, Antonio Gramsci, (des) conhecendo o legado de Louis Althusser, anteriormente tratado  no ensaio A Questão da Ideologia (São Paulo: Companhia das Letras, 2002: 123)  quando chama a atenção para a advertência Althusseriana sobre os AIE: “as ideologias não ´nascem` dos AIE, mas das classes sociais em luta; de suas condições de existência, de suas práticas, de suas experiências de lutas etc.” E conclui da seguinte forma: “E com essa advertência o combativo filósofo francês procurava deixar claro que sua oposição à valorização ideológica da subjetividade não significava absolutamente nenhum abandono da disposição para a luta, característica da sua militância comunista”.




Bibliografia geral consultada:

ALTHUSSER, Louis, “Freud et Lacan”. In: La Nouvelle Critique, n° 161-162, Paris, 1965; Idem, “Contradição e Sobredeterminação”. In: Análise Crítica da Teoria Marxista. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967; Idem, Lenine e a Filosofia. Lisboa: Editorial Estampa, 1970a; Idem, “Idéologie et Appareils Idéologiques d` Etat”. In: Pensée. Paris, jun. 1970b; Idem, Montesquieu la Politique et L` Histoire. Paris: Presses Universitaires de France, 1972; Idem, Ideologia y aparatos ideológicos de Estado. Buenos Aires, Nueva Visión, 1974; Idem, Seis Iniciativas comunistas. Sobre el XXI Congreso del PCF. Mexico: Siglo Veintiuno Editores, 1977; Idem, Nuevos Escritos. La crisis del movimento comunista internacional frente a la teoria marxista. Barcelona: Editorial Laia, 1978; Idem, Montesquieu, A Política e a História. 2ª edição. Lisboa: Editorial Presença; Brasil: Livraria Martins Fontes, 1977; Idem, ‘et al’, Ler O Capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, vols 1-2; Idem, Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. 3ª edição. Editorial Presença: Lisboa, 1980; Idem, Freud e Lacan. Marx e Freud: Introdução crítica-histórica. 2ª edição. Rio de Janeiro: Graal, 1985; OLIVEIRA, A. C. F, Razões ´humanas` para esquecer Louis Althusser. Rio de Janeiro: Alceu: Vol. 5, n. 09, p. 114-131, jul-dez. 2004; GRAMSCI, Antonio, Lettere dal carcere. Torino: Ed. Einaudi, 1947; Idem, Il Risorgimento. Torino: Ed. Einaudi, 1954; Scritti Giovanilli (1914-1918). Torino: Ed. Einaudi, 1958; Idem, Notas sobre Maquiavelo, sobre política y sobre el Estado moderno. Buenos Aires: Lautaro, 1962; Idem, Antologia. México: Siglo XXI, 1970; Idem, Conceito de nacional-popular. Teoria. Obras Escolhidas. Vol. II. Lisboa: Editorial Estampa, 1974; Gli intellettuali e l`organizazione della cultura. Torino: Ed. Einaudi, 1975; Idem, Cuadernos de la Carcel. A cargo de Valentino Gerratana. México: Ediciones Era, 1981; 6 volumes; Idem, “Problèmes de Culture. Le racisme, Gobineau et les origines historiques de la philosophie de la práxis”. In: Cahiers de prison. Cahiers: 14, 15, 16, 17, 18. Paris: Éditions Gallimard, 1990; BACHELARD, Gaston, Le pluralisme cohérent de la chimié moderne. Paris: Vrin, 1932; Idem, Le nouvel esprit scientifique. Paris: F. Alcan, 1963; Idem, La formation de l`esprit scientifique: contribution à une psycanalyse de la connaissance objective. 4ª edition. Paris: Vrin, 1966; MARX, Karl & ENGELS, Manifesto Comunista (Org. e int. de Osvaldo Coggiola). São Paulo: Boitempo/Jinkings Editores Associados, 1998; HALL, Stuart, “et al”, Da Ideologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980; ELSTER, Jon, Marx, hoje. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; GALLINO, Luciano, “Gramsci y las ciencias sociales”. In: Cuadernos de Pasado y Presente/19. Córdoba, 1972; MACCIOCCHI, Maria-Antonieta, Pour Gramsci. Éditiosn du Deuil, 1971; KONDER, Leandro, A Derrota da Dialética - A Recepção das Ideias de Marx no Brasil, até o começo dos anos trinta. Tese de Doutorado em Filosofia. Rio de Janeiro: Campus, 1988; Idem, A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002; Idem, Em torno de Marx. São Paulo: Boitempo, 2010,   entre outros.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pela sua observação ;)