sexta-feira, 12 de abril de 2013

The Walking Dead e a Distopia Moderna



Via: Páginas Perdidas 
I
magine um mundo em que toda a sociedade como a conhecemos ruiu. O estado, a policia, a escola e todas as instituições simplesmente deixaram de existir. O que há são apenas cidades devastadas com pequenos grupos de indivíduos miseráveis vagando como vagabundos; acrescente a isso que pelo mundo espalham-se uma quantidade infindável de zumbis, dezenas de milhares, tantas quanto são as estrelas do céu, cujo único propósito é se alimentar de carne humana…
Este é o pano de fundo do qual se desenvolve The Walking Dead. Uma famosa Hq, criada por Robert Kirkman, que tornou-se uma conceituada série televisiva dirigida por Frank Darabond.  Nela acompanhamos as desventuras de um grupo de sobreviventes, liderados pelo ex-policial Rick Grimes, vagando por cidades devastadas em busca de salvação. Ao contrário de outras obras que trataram do tema, TWD não se preocupa com as causas que levaram a epidemia ou mesmo com as articulações do governo na tentativa de barrar o avanço dos zumbis sobre as cidades. O espectador é jogado, assim como os personagens da trama, de chofre nesse mundo caótico e cinzento. Apenas percebemos o mundo pela lente dos personagens, que também não sabem quase nada do que aconteceu. O que sabemos sobre natureza do desastre vem apenas de informações desencontradas, pedaços desarticulados e fragmentários de relatos provindos dos sobreviventes. Eles, assim como nós, são pequenas formigas indefesas e sem rumo vagando pela vastidão aterrorizante de um mundo assombrado pelo desastre e pela morte.
Uma das inovações do universo criado por Kirkman é justamente no desenvolvimento emocional dos personagens. Eles não são apenas receptáculos dos fenômenos como em outras obras de terror, como acontece principalmente nas obras de Lovecraft — que ajudou a popularizar na narrativa de terror/fantástico. Os indivíduos que vemos se movimentar em TWD não são peças de um tabuleiro, são pessoas com histórias, medos, aspirações, ambições e desejos. O desastre e a morte de seus entes queridos pesam sobre seus ombros. Quando os vemos agindo e reagindo diante das dificuldades, notamos que, provavelmente, faríamos do mesmo modo… Apesar da realidade apresentada ser completamente fantástica, os desdobramentos dela sobre o mundo são extremamente realistas. Sentimos os terrores, os dilemas e as situações que os testam até os limites da insanidade.
Este mundo cinzento, sem esperança e pestilento, onde as brumas da morte vagam como uma presença sempre sentida, sempre próxima e quase sempre fatal, remete a insegurança, a condição de guerra de todos contra todos e a possibilidade de morte violenta, outrora descrita por Hobbes, de um estado pré-histórico ou de completa falência do contrato social. O resultado desse cenário é o estabelecimento de pequenas tribos que estabelecem suas próprias leis, costumes, crenças, mas acabam por ser submetido por outras comunidades mais fortes — vejamos o caso dos Salvadores quando submetem HillTop Alexandria.
O fim do contrato social e a emergência da guerra de todos contra todos leva, inevitavelmente, a destruição de todas as desigualdades e niveladores sociais antes endêmicos na sociedade. Agora, a hecatombe social propicia o surgimento de novas hierarquizações. Aquele que era apenas um entregador de pizza, agora, torna-se um dos mais destacados membros do grupo (Glen); outro que era só um pai de família com um emprego sem perspectiva torna-se o líder de uma grande comunidade (Philip, o governador); o policial tímido de uma insignificante cidade virá, com o fim da estrutura sistêmica da sociedade, a ser o líder implacável que passará pelas mais duras provações (Rick Grimes), só para citar alguns exemplos. A meu ver, a estrutura da trama é semelhante a de estórias de aventura e mitologia, como Crônicas de NárniaSenhor dos AnéisO Hobbit ou as historias de terror de Lovecraft, por exemplo. Nelas os personagens são apenas medíocres cidadãos de suas respectivas comunidades que são jogados contra a sua vontade num mundo completamente novo que promete aventuras, duras provações e descobertas; um mundo, enfim, que modificará completamente toda sua subjetividade a ponto de não enxergarem com o mesmo olhar seu passado, seu presente ou seu futuro. A hecatombe zumbi, portanto, não opera apenas como um destruidor das antigas hierarquizações de um mundo falido pela corrupção, mas também com um deslocador da própria visão de mundo dos personagens. A mudança ocorre num nível hermenêutico. Graças aos estudos sobre ideologia de Mannheim e, mais remotamente, as reflexões de Marx e Engels em A Ideologia Alemã, que os homens tem maneiras de pensar que são extremamente induzidas por suas formas de vivencia e por seu contexto sócio histórico. As mudanças de pensar dos indivíduos de uma sociedade ocorreria apenas se as estruturas desta sociedade fossem brutalmente abalados. Não é o que ocorre com os personagens de TWD? Todas as suas certezas que antes eram seguradas por um mundo onde as instituições pareciam mais firmes foi brutalmente destruída e, com ela, todas, ou quase todas suas ideias de normalidade e moralidade tiveram que ser revistas. Aqui o que reina é a incerteza, a maldição e a morte. O mundo realmente acabou? Ainda é possível reconstruir as coisas como eram antes? As antigas leis que tínhamos antes ainda podem ser postas em práticas se criarmos uma comunidade ou temos que começar do zero, como fizeram nossos ancestrais?
Contudo, os grandes astros da trama não são Rick Grimes e seu grupo, são os zumbis. Eles são os elementos dinamizadores do enredo. São o elemento anárquico, ambivalente e destruidor. Os zumbis são a variável do qual o Estado e a sociedade não foram capazes de medir, controlar e homogeneizar. Eles são a ambivalência materializada. A contradição social extrema. O lado negro revelado. O impensável, o incalculável, o indizível e o incontrolável. Os Walkers são a materialização do fracasso social, do fim da modernidade e de um projeto de civilização.
O fim e o fracasso da construção iluminista de sociedade — é isso que o seriado representa. Portanto, TWD situa-se no hall de histórias distópicas que povoam a literatura e as artes desde o inicio do século XX, entre as quais estão 1984, de George Orwell e aGuerra dos Mundos de H.G. Wells, que mostram um projeto falido de modernidade, de civilização e de sociedade. A distopia mostra todo o lado escuro do progresso e como esse lado obscuro pode, a qualquer momento e inevitavelmente, emergir e se apossar de tudo o que temos, de tudo que acreditamos e de tudo o que somos. As obras literárias distópicas foram muito comuns na primeira metade do século XX sua descrença em relação ao progresso material da sociedade diverge radicalmente das obras utópicas, que foram tão famosas na literatura e no pensamento social moderno entre os séculos XVI e final do século XIX. O desenvolvimento do capitalismo, os avanços da ciência e o esfacelamento dos laços feudais fizeram com que o homem moderno tivesse uma crença absoluta de que a estes valores, se radicalizados, poderiam levar indiscutivelmente ao melhoramento progressivo da humanidade, eis a utopia idealizada.
O pensamento utópico se espraiou tanto pela literatura quanto pelo pensamento filosófico e social, seus principais representantes foram Thomas Mann, Thoreau, Rousseau, Whitman e o pensamento socialista do século XIX, dentro do qual a teoria marxiana é o seu maior e mais consistente expoente. Mas o que aconteceu para que a crença na modernidade e no progresso se transformasse num profundo ceticismo em relação ao futuro da humanidade? A partir de quando isso aconteceu? A resposta está justamente nos desdobramentos colaterais que a expansão ininterrupta do capital trouxe para a humanidade. Se a partir das ruinas do feudalismo e até o fim do século XIX a sociedade europeia plantou as sementes e viu crescer e florescer essa estrondosa árvore chamada de modernidade, foi no século XX que percebemos que ela estava repleta de ervas daninhas e que seu seus galhos começaram a nos envolver e nos prender com ou uma grade de ferro. Foi no século XX que notamos as consequências do modo de vida moderno: duas grandes e devastadoras guerras, uma crise brutal do capitalismo, a divisão do mundo em dois blocos de poder, os riscos de uma grande guerra nuclear, lutas dos povos dominados da Ásia e África se emanciparem frente as potencias europeias e a queda de hegemonia das velhas nações do velho mundo. Todos esses processos se deram a custa de milhares de vidas humanas e acabou sendo inevitável que o pensamento social da época captasse as nuances da tragédia da modernidade no século XX e, ao passar pelo seu filtro critico, concluísse que o capitalismo não significava uma libertação da humanidade, mas simplesmente, como dissera Weber, a criação de uma nova grade de ferro que só se esfacelaria quando a ultima camada de carvão fóssil fosse consumida. Agora, na contemporaneidade, há novas ameaças sobre a humanidade. O processo de radicalização da modernidade, liquefação de todas as instituições criadas por esta nos mostrou que estamos, mais do que nunca, jogados num mar tempestuoso, guiando um barco que navega sem rumo, sem objetivo, onde a certeza de nossas coordenadas pode ser radicalmente mudada dependendo do sabor do vento ou das marés. A modernidade liquida, a nova modernidade do mundo atual, trouxe consigo a ameaça de um desastre natural, de epidemias proporcionadas por germes criados em laboratório, de guerras por recursos naturais, por implosão de nossos valores mais caros e formações de radicalismos e de fundamentalismos religiosos, econômicos, morais e etc. Só o que parece mais firme para nós, pobres homens modernos, é a incerteza e o niilismo — nada tem sentido, nada parece valer a pena e o proposito das coisas simplesmente desmoronou.
TWD espraia-se nessa preocupação muito forte no mundo atual. A sociologia, a economia, a filosofia, a historia e todas as outras ciências humanas estão preocupadas as consequências trazidas por séculos de modernização, de racionalização, de industrialização e de expansão ininterrupta do capitalismo moderno. TWD, a meu ver, é uma metáfora da falência de nosso projeto de civilização. Os zumbis, o desespero, o niilismo dos personagens são alegorias que propiciam uma ontologia ou uma alegoria dos dilemas da modernidade liquida. A aclamada Hq de Kirkman, em toda a sua complexidade dos temas tratados, do jogo hermenêutico de destruição dos valores e visão de mundo dos personagens, da desintegração completa da sociedade e da emergência de novas desigualdades e hierarquizações e da vivencia num mundo onde apenas a incerteza é a única coisa mais firme nesse mundo cinzento é, por assim dizer, uma metáfora perfeita da distopia em que vivemos.
Por isso ela faz tanto sucesso; de reverenciada historia em quadrinhos a uma bem sucedida serie televisiva, seu segredo não está num enredo de uma história genérica de terror, pois tantos filmes de mortos vivos já foram produzidos, mas na maneira como trata seus temas, seus personagens e, acima de tudo, consegue tocar nossa subjetividade como uma distopia da vida moderna.
Em meio ao niilismo extremo ainda há esperança. Mesmo sabendo de todo o horror que os cerca, a intenção de continuar a qualquer custo, de procurar um lugar que ofereça a possibilidade de um novo recomeço, como em Alexandria. È um dos ímpetos mais incríveis do homem moderno é continuar, apesar de tudo, da dor, do horror, da morte, das guerras e das epidemias.
A luta para a superação da distopia ainda é possível.

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