segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

SLUMDOG versus VIDAS SECAS




Analise sociológica comparativa do filme “Quem quer ser um milionário?” do diretor Danny Boyle e “Vidas secas”  do diretor Nelson Pereira dos Santos, adaptado da obra homônima de Graciliano Ramos

O que há de similar entre essas duas histórias geograficamente tão distantes? De um lado temos Fabiano, sertanejo branco, de olhos azuis, cujo rosto o sol forte queimou, do outro temos Jamal Malik, um jovem indiano, órfão, miserável, que é forte candidato na fila da indigência. Nas duas obras o plano de fundo é basicamente o mesmo. Os heróis vivem em uma extrema miséria e lutam contra as condições desfavoráveis do meio que lhes cerca. Numa terra de disparidades, histórias de tensão crítica entre o homem e o meio, de nobres e miseráveis, onde o “céu” e “inferno” convivem lado a lado. Fanatismo religioso, miséria, desigualdade social, violência, aparecem no decorrer das histórias, mas de formas diferentes.


 Vidas secas é um romance seco, enxuto, sem alegria, sem dialogo e sem amor, como o próprio Graciliano Ramos poderia ter dito. A história de Fabiano é real, é plausível, é quase um tipo-ideal de retirante nordestino, tem mulher e filhos, uma cachorra, poucos pertences, “vem de lugar nenhum” e “vai para não se sabe onde”. Na minha infância, eu já ouvi a história de Vidas Secas só que os protagonistas eram outros, meu avô era Fabiano, e minha mãe me contava a história de como ela veio parar na capital, e de como foi sua infância. Quando li Vidas secas reconheci na hora os personagens, e pude entender um pouco melhor minha própria origem. Creio que talvez não só a minha, mas a da grande maioria dos nordestinos.
Vidas secas é o próprio relato do êxodo perpetuo que não tem começo nem fim, é uma constante fuga, é uma constante luta que passa dos pais para filhos. É uma maldição que vive através de gerações. Essa maldição te um caráter quase religioso, parece ser a vontade divina. A vontade divina se materializando em destino social, a sina que APARENTEMENTE não pode ser contrariada.
  A história de “Quem quer ser um milionário me parece mais com a fábula da gata borralheira, o menino pobre, mas puro de coração, que busca a felicidade. O titulo original em inglês é “Slumdog milionaire”, traduzido é algo como “cachorro favelado milionário”, mostra muito bem quem é o personagem principal, um jovem tratado como um animal miserável, da mesma forma que Fabiano. Ambos vivem como animais a mercê do meio, indistintos na multidão. Nas duas histórias existe um personagem que não é visível, mas que atua conduzindo os personagens durante a trama. O destino. A figura do destino é algo que é comum nas duas histórias, só que para Fabiano o destino é uma prisão, e para Jamal o destino é libertador. A relação dos personagens com a estrutura social é algo fundamental para entender suas histórias.
 A estrutura de classes sociais acaba sendo diretamente influenciada pelas relações dos homens com o meio, seja através da produção material ou não. Nas histórias, suas respectivas narrativas, tanto Fabiano como Jamal Malik são mostrados como “vitimas” de um meio. Algo determinado e hermético. O destino socialmente construído e visto como destino teológico. Um é influenciado diretamente pelo modo de produção do sertão nordestino, o outro é influenciado pelo estilo de desenvolvimento de um país capitalista em crescimento, a Índia moderna que vive com suas contradições. Conseqüentemente, surgem milhares de outros “slumdogs” da cidade de Mumbai e outras e milhares de “Fabianos” no sertão.
O que não consta em nenhuma das duas histórias é o que faz eles terem esses “destinos”, que ao meu ver não são tão “destinos” assim. Ambos vivem, tem glorias e não por mérito próprio como prega a cartilha das sociedades modernas, mas por pura “sorte”.
Na estória, Fabiano teve sua sina traçada ao nascer, Jamal também, mas o que ambos não percebem é que os seus sonhos de ter uma vida mais confortável são usados contra eles próprios, fazendo assim com que eles vivam uma vida de pesadelos, trabalhando de sol a sol, seja capinando ou seja servindo chás em um callcenter, na esperança de um dia  poder encontrar seu amor perdido de infância ou de um dia poder ter uma cama de couro, igualzinha a de Seu Tomás.



O que aconteceu com Fabiano e sua família não foi nada mais do que o óbvio, por Graciliano ser um marxista convicto, portanto um materialista histórico, a sua narrativa está fundada no mais comum e usual, não na exceção, mas sim na regra. Já na história escrita por Vikas Swarup, autor da obra que deu origem ao filme “Quem quer ser um milionário?”, o que ocorre com Jamal é a chamada “Loteria da babilônia” já descrita por Jorge Luis Borges, e por Adorno e Horkheimer. A loteria da babilônia é um mecanismo muito útil para fabricar a ilusão da esperança de que um dia você poderá ter o que deseja: todos concorrem, todos tem a chance de ganhar, mas só um ganha. E como diz o poeta Zé Ramalho da Paraíba, “O povo foge da ignorância, apesar de viver tão perto dela e sonham com melhores tempos idos. Contemplam esta vida numa cela, esperam nova possibilidade de verem esse mundo se acabar”. Na esperança eles nascem, crescem, trabalham, e morrem.
O que aconteceu com Jamal não é algo impossível, só é improvável. O que me veio á mente foi a cena em que está indo para a emissora de TV para responder a ultima pergunta em quanto milhões de pessoas se amontoavam para vê-lo. Todos “Slumdogs”. Lembrei da cachorra Baleia de Fabiano de Vidas Secas, a cachorra é mais bem tratada do que aqueles seres humanos da estória de Jamal Malik.
Se existisse um céu de cachorros e a cachorra Baleia pudesse falar e tivesse visto a história de Jamal Malik, ela provavelmente diria: -“Pobres humanos, “Vidas Secas” é a regra, “Quem quer ser um milionário” é uma exceção que ajuda a manter a regra, e nada mais.

BÔNUS:
Referências:
- LIVRO E FILME: Vidas secas, Graciliano Ramos.
-  FILME: Quem quer ser um milionário, do diretor Danni Boyle.
- MÚSICA: Admirável gado novo, Zé Ramalho.

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