terça-feira, 20 de março de 2012

A Semana de Arte Moderna faz 90 Anos. O que nos legou?


                         A Semana de Arte Moderna faz 90 Anos. O que nos legou?


                                                                          Ubiracy de Souza Braga*
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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).


                                                      Para Rafaela de Souza Bittencourt, com admiração.
            


Já tratamos noutro lugar as relações entre memória e história: na arte, na política, na vida social, no cinema, na cultura e na tragédia, na música, na religião, na economia, no trabalho, enfim sobre epifenômenos, em sociedades heteróclitas e mesmo as de tipo “pós-modernas”, para lembramos de Jean-François Lyotard (1974; 1993).  Agora me volto para a Semana de Arte Moderna, também chamada de Semana de 22, que ocorreu em São Paulo naquele ano, nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro, no Teatro Municipal, em que cada dia da semana foi dedicado a um tema, respectivamente: pintura e escultura, poesia, literatura e música. O presidente do estado de São Paulo à época, Washington Luís, advogado, historiador e político brasileiro, décimo primeiro presidente do estado de São Paulo, décimo terceiro presidente do Brasil e último presidente da República Velha, teve o mérito de apoiar o movimento, especialmente por meio de René Thiollier, que solicitou patrocínio para trazer os artistas do Rio de Janeiro, Plínio Salgado e Menotti Del Pichia, membros do Partido Republicano Paulista.
A Semana de Arte Moderna, fora das bestialogias existentes nas universidades nordestinas e particularmente no Ceará, suas aparentes semelhanças, representou uma verdadeira renovação de linguagem, na busca de experimentação, na liberdade criadora da ruptura com o passado e até corporal, pois a arte passou então da vanguarda, para o modernismo. O evento marcou época ao apresentar novas ideias e “noções de conteúdos” artísticos: a) a poesia através da declamação, que antes era só escrita; b) a música por meio de concertos, que antes só havia cantores sem acompanhamento de orquestras sinfônicas; e, c) a arte plástica exibida em telas, esculturas e maquetes de arquitetura, com desenhos arrojados e modernos. O adjetivo novo passou a ser marcado em todas estas manifestações artísticas, estéticas e filosóficas que propunha algo no mínimo curioso e de interesse político.

Participaram da Semana nomes consagrados do modernismo brasileiro, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Víctor Brecheret, Plínio Salgado, Anita Malfatti, Menotti Del Pichia, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, Heitor Villa-Lobos, Tarsila do Amaral, Tácito de Almeida, Di Cavalcanti, entre outros, e como um dos organizadores o intelectual Rubens Borba de Moraes que, entretanto, por estar doente, dela não participou ativamente.
                                                  
                                                              Heitor Villa-Lobos
            Vale lembrar que a cultura brasileira é uma síntese da influência dos vários povos e etnias que formaram, de acordo com Darcy Ribeiro (1995), “o povo brasileiro”. Impávido, admite,
o processo civilizatório é minha voz nesse debate. Ouvida, quero crer, porque foi traduzida para as línguas de nosso circuito ocidental, editada e reeditada muitas vezes e é objeto de debates internacionais nos Estados Unidos e na Alemanha. A ousadia de escrever um livro tão ambicioso me custou algum despeito dos enfermos de sentimentos de inferioridade, que não admitem a um intelectual brasileiro o direito de entrar nesses debates, tratando de matérias tão complexas. Sofreu restrições, também, dos comunistas, porque não era um livro marxista, e dos acadêmicos da direita, porque era um livro marxista. Isso não fez dano porque ele acabou sendo mais editado e mais lido do que qualquer outro livro recente sobre o mesmo tema” (cf. Ribeiro, 1995:14).
Não existe uma cultura brasileira perfeitamente homogênea, e deveria? Existe sim um mosaico de diferentes vertentes culturais que formam juntas, a “cultura do Brasil”. Naturalmente, após mais de três séculos de colonização portuguesa, a cultura do Brasil é, majoritariamente, de raiz lusitana. E Gilberto Freyre foi o primeiro a demonstrar (cf. Freyre, 1923). É justamente essa herança cultural lusa que compõe a unidade do Brasil: apesar do povo brasileiro ser um “mosaico étnico”, todos falam a “mesma língua”, aparentemente o português e, quase todos, são cristãos, com largo predomínio de católicos. Esta igualdade linguística e religiosa é um fato raro, como admitiu o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen (cf. Welhing, 1999; Braga, 2009), que como ideólogo comparou-o para um país de grande tamanho como o Brasil, especialmente em comparação com os países do Velho Mundo.
Embora seja um país de colonização portuguesa, outros grupos étnicos deixaram influências profundas na cultura nacional, destacando-se os povos indígenas, os africanos, os italianos e os alemães. As influências indígenas e africanas deixaram marcas no âmbito da música, da culinária, do folclore, do artesanato, dos caracteres emocionais e das festas populares do Brasil, assim como centenas de empréstimos à língua portuguesa. É evidente que algumas regiões receberam maior contribuição desses povos: os estados do Norte têm forte influência das culturas indígenas, enquanto algumas regiões do Nordeste têm uma cultura bastante “africanizada”, sendo que, em outras, principalmente no sertão, há uma intensa e antiga mescla de caracteres lusitanos e indígenas, com menor participação africana.
Quando a mais famosa mãe-de-santo do Brasil, Menininha de Gantois morreu, em agosto de 1986, aos 92 de idade, seu enterro paralisou literalmente a vida de uma das cidades que simboliza profunda religiosidade do país, (São) Salvador, Bahia, num ato público de repercussão (inter) nacional. O jornal “O Estado de São Paulo”, no chamado “paradoxo de consequências não intencionais”, para lembrarmo-nos de Max Weber,   ignora o que ele próprio confirma: “conceitos culturais” reiterando preconceituosamente, com significante racista, quando se refere à cerimônia fúnebre no editorial: “Fantasmas primitivos e superstições cibernéticas”, afirmou o seguinte:
Diante do cortejo imenso e da importância política que presenças ilustres deram ao ato, resta-nos raciocinar sobre o imenso esforço de educação que é necessário para que o Brasil se transforme numa nação moderna, em condições de competir com os maiores países do mundo. A importância exagerada dada a uma sacerdotisa de cultos afro-brasileiros é a evidência mais chocante de que não basta ao Brasil ser catalogado como a oitava maior economia do mundo, se o País ainda está preso a hábitos culturais arraigadamente tribais. Na era do chip, no tempo da desenfreada computação tecnológica, no momento em que a tecnologia desenvolvida pelo homem torna a competição de mercados uma guerra sem quartel pelas inteligências mais argutas e pelas competências mais especializadas, o Brasil, infelizmente, exibe a face tosca de limitações inatas, muito dificilmente corrigíveis por processos normais de educação em curto prazo. Enquanto o mundo lá fora desperta para o futuro, continuamos aqui presos a conceitos culturais que datam de antes da existência da civilização” (cf. Jornal O Estado de São Paulo, 17.8.1986).
Isto posto, lembramos que A Semana de Arte Moderna ocorreu em uma época repleta de turbulências políticas, sociais, econômicas e culturais, como o Tenentismo, nome dado ao movimento político-militar e à série de rebeliões de jovens oficiais de baixa e média patente do Exército Brasileiro no início da década de 1920, como a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana em 1922, a Revolução de 1924, a Comuna de Manaus de 1924 e a Coluna Prestes, entre 1925 e 1927 ligada ao tenentismo de insatisfação com a República Velha, tendo como exigência do voto secreto, defesa do ensino público e a obrigatoriedade do ensino primário para toda população. Descontentes com a situação política do Brasil propunham reformas na estrutura de poder do país, entre as quais se destacam: o fim do voto de cabresto, instituição do voto secreto e a reforma na educação pública. O movimento tenentista não conseguiu produzir resultados imediatos na estrutura política do país, mas conseguiu manter viva a revolta contra o poder das oligarquias, representada na Política do “café com leite”, preparando o caminho para a Revolução de 1930, que alterou definitivamente as estruturas de poder no país.
                                
                                    A marcha dos 18 do Forte de Copacabana (RJ).
Neste sentido, fora de quaisquer determinismos, é possível admitir a caixa de ressonância do ponto de vista da mobilização da sociedade na medida em que na Semana de Arte Moderna de 1922 as “vanguardas estéticas” surgiam e o mundo europeu se espantava com as novas linguagens “desprovidas de regras”. Alvo de críticas e em parte ignorada, ela não foi bem entendida em sua época no contexto da República Velha, controlada pelas “oligarquias cafeeiras” e pela política do “café com leite”. O capitalismo no Brasil vinha aparentemente consolidando a República e a elite paulista, esta totalmente influenciada de fora para dentro pelos padrões estéticos europeus mais tradicionais (cf. Tavares, 1982a).
Do ponto de vista conceptual a nova intelligentsia ou intelligentzia brasileira dos anos 1910-20 viu-se em um momento de necessidade de abandono dos antigos ideais estéticos do século XIX ainda em moda no país. A origem do termo russo: интеллигенция ou do latim: intelligentia, usualmente refere-se a uma “categoria ou grupo de pessoas engajadas em trabalho intelectual complexo e criativo direcionado ao desenvolvimento e disseminação da cultura, abrangendo trabalhadores intelectuais”. Alexander Gella, por seu turno, afirma que o termo teria sido empregado pela primeira vez na literatura polonesa, pelo filósofo e ativista Karol Libelt, em 1844, em um de seus livros: Filozofia i krytyka (“Filosofia e Crítica”). A princípio, a palavra tinha um sentido restrito, baseado na auto-definição de certa categoria de intelectuais.
Contudo, etimologicamente credita-se a Peter Boborykin a criação, por volta de 1860, do termo intelligentsia. Ledniski mostra, todavia que Belinski (ele próprio um dos membros da intelligentsia russa) já utilizava o termo em 1846. Richard Pipes constata o uso do termo intelligentz na Alemanha, em 1849, para designar o mesmo fenômeno. Gella, por seu turno, afirma que o termo foi empregado pela primeira vez na Polônia, em 1844. Posteriormente, passou a ser empregada para designar coisas diferentes: tanto o conjunto dos intelectuais de um dado país, como os grupos mais restritos de intelectuais que se fazem notar por sua capacidade de fornecer uma visão compreensiva do mundo, por sua criatividade ou por suas atividades direta ou indiretamente políticas.
                                               
               Theatro Municipal: o palco dos três dias de evento da grande semana na década de 1920.
            No caso brasileiro, havia algumas notícias sobre as experiências estéticas que ocorriam na Europa no momento, mas ainda não se tinha certeza do que estava acontecendo e quais seriam os rumos a se tomar. O principal foco de descontentamento com a ordem estética estabelecida se dava no campo da literatura (e da poesia, em especial). Exemplares do “Futurismo italiano” chegavam ao país e começavam a influenciar alguns escritores, como Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida. O futurismo é um movimento artístico e literário, que surgiu oficialmente em 20 de fevereiro de 1909 com a publicação do Manifesto Futurista, pelo poeta italiano Filippo Marinetti, no jornal francês Le Figaro. Os adeptos do movimento rejeitavam o moralismo e o passado, e suas obras baseavam-se fortemente na velocidade e nos desenvolvimentos tecnológicos do final do século XIX.
                                   
Há 90 anos, o palco apresentou “Valsa Mística”, “O Rodante”, “A Fiandeira” e outras obras.
Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944) foi um escritor, poeta, editor, ideólogo, jornalista e ativista político italiano. Foi o iniciador do movimento futurista, cujo manifesto publicou no jornal parisiense Le Figaro, em 20 de fevereiro de 1909. Italiano nascido na cidade egípcia de Alexandria foi um dos criadores do movimento estético denominado futurismo - a primeira vanguarda histórica do século XX. Filho de um rico comerciante fez seus estudos em sua cidade natal, e também em Paris, Pádua e Gênova, onde se formou em direito e viveu muito tempo.
 Suas primeiras obras foram poemas que escreveu para revistas literárias e, mais tarde para sua própria revista - Poesia. Publicou no jornal Le Figaro (1909), de Paris, um famoso manifesto em que mostrou sua oposição às fórmulas tradicionais e acadêmicas, expondo a necessidade de abandonar as velhas fórmulas e criar uma arte livre e anárquica, capaz de expressar o dinamismo e a energia da moderna sociedade industrial, que é considerado o texto fundador do movimento futurista. Este não foi o único movimento italiano de vanguarda, tendo sido, no entanto o mais radical de todos, por pregar ruidosamente a anti-tradição. Indicava que as artes demolissem o passado e tudo o mais que significasse tradição, e celebrasse a velocidade, a era mecânica, a eletricidade, o dinamismo, a guerra.
Ipso facto os primeiros “futuristas europeus” também exaltavam a guerra e a violência. O “Futurismo” desenvolveu-se em todas as artes e influenciou diversos artistas que depois fundaram outros movimentos modernistas. No primeiro manifesto futurista de 1909, o slogan era Les mots en liberté e levava em consideração o design tipográfico da época, especialmente em jornais e na propaganda. Eles abandonavam toda distinção entre arte e design e “abraçavam a propaganda como forma de comunicação”. Foi um momento de “exploração do lúdico, da linguagem vernácula, da quebra de hierarquia na tipografia tradicional, com uma predileção pelo uso de onomatopeias”.
Estas explorações tiveram grande repercussão no dadaísmo, no concretismo, na tipografia moderna, e no design gráfico pós-moderno. O dadaísmo foi um movimento artístico que surgiu na Europa (cidade suíça de Zurique) no ano de 1916. Possuía como característica principal a ruptura com as formas de arte tradicionais. Portanto, o dadaísmo foi um movimento com forte conteúdo anárquico. O próprio nome do movimento deriva de um termo inglês infantil: “dadá” (brinquedo, cavalo de pau). Daí observa-se a falta de sentido e a quebra com o tradicional deste movimento. Surgiu na França, seus principais temas são as cores. Isaiah Berlin refere-se à intelligentsia como um grupo de pensadores que se veem a si próprios em oposição direta a um regime irracional e opressivo e que se unem, não apenas pela oposição a tal regime, mas por um comprometimento com o pensamento racional e com o progresso social e intelectual, pela profunda crença em valores tais como liberdade individual, as liberdades civis e a busca da verdade - e, portanto oposição ao governo estabelecido, às igrejas estabelecidas, à tradição e a todo tipo que se acredite como irracionalidade.
O Concretismo foi um movimento vanguardista surgido em 1953, inicialmente na música, depois na poesia e, por fim, nas artes plásticas. Defendia a racionalidade e rejeitava o Expressionismo, o acaso, a abstração lírica e aleatória. Nas obras surgidas no movimento, não há intimismo nem preocupação com o tema, seu intuito era acabar com a distinção entre forma e conteúdo e criar uma nova linguagem. Sua máxima expressão mundial é o grupo concretista de São Paulo, fundador da Revista Noigandres, na década de 1950, liderado pelos irmãos Augusto de Campos e Haroldo de Campos, Décio Pignatari e José Lino Grunewaldt. A partir da década de 1960, poetas e músicos do movimento passaram a se envolver em temas sociais, surgindo várias tendências pós ou neoconcretistas, entre eles Ferreira Gullar, o poema-práxis é um poema que organiza e monta, uma realidade situada, segundo três condições de ação: o ato de compor; a área de levantamento da composição; o ato de consumir e, claro, Paulo Leminski.
A segunda ordem de dificuldades vem do fato de que Gella (assim como outros autores) estabelece como uma das características essenciais de uma intelligentsia a sua constituição como stratum social específico, distinto das outras camadas da sociedade. Essa característica aparece de fato como um dos traços característicos da intelligentsia russa, o que pode ser explicado pela existência de centros específicos de formação (como o gymnasium) e, sobretudo, pela existência de uma estratificação social e cultural bastante rígida na sociedade russa, o que fazia com que todo conjunto de indivíduos atípicos tendesse a aparecer como um grupo específico. Todavia, nada indica a permanência desse traço em outras condições históricas, ou em outras sociedades, nas quais o “desvio” seja algo socialmente admitido.
A esse respeito, convém lembrar que Max Weber mostrou, estudando os literati chineses, que o fato de possuir uma competência única (no caso, a arte da escrita e o conhecimento da literatura como herança cultural) distinguia os literati dos outros grupos sociais; mas que esta competência específica em si, assim como certo número de hábitos comuns, não era suficiente para fazer deles um grupo específico. Essa qualidade de constituir um stand só é adquirida a partir do momento em que os literati chineses estabelecem seu monopólio formal sobre o conhecimento da escrita, conquistam um papel preciso na administração e desenvolvem procedimentos (o controle do acesso ao ensino) para garantir sua reprodução social.
O enfoque adotado neste texto, o de tratar a intelligentsia como “sujeito coletivo”, para melhor realçar a problemática que nos interessa, exclui a análise das clivagens teóricas e políticas que já existiam potencialmente em seu seio e que irão se aprofundar, rapidamente. É preciso, não obstante, assinalar que, por um lado, se a renovação estética e a vontade de agir para transformar a sociedade constituem características comuns ao conjunto de seus membros, por outro lado a evolução (e a explicitação) de suas “visões de mundo”, as direções diferentes que querem imprimir à mudança, suas posições políticas frente aos acontecimentos concretos, etc., operam cisões profundas (o que não significa irremediável) durante os anos 1930.
Não se trata de clivagens no seio de uma mesma “família política”, como era o caso para a intelligentsia russa com socialistas, eslavófilos, anarquistas, narodniks, etc., mas de fraturas entre famílias políticas radicalmente opostas. O exemplo extremo é o de Plínio Salgado: na esteira e contexto do movimento da Semana de Arte Moderna, ele publica, em 1926, O Estrangeiro e, seis anos mais tarde, torna-se o fundador e o aprendiz de führer do fascismo brasileiro (cf. Tavares, 1982a; 1982b). Talvez seja o caso de acrescentar ainda que no próprio momento da realização da Semana de Arte Moderna, a direita católica funda o Centro D. Vital e a revista com o sugestivo nome de A Ordem, cujo líder a partir de 1928, será Amoroso Lima, jovem crítico literário e escritor de talento, parte integrante da intelligentsia cristã.
Não devemos perder de vista que os intelectuais brasileiros do final do século XIX começaram a perceber a distância social entre a realidade brasileira e o pensamento que eles próprios produziam. Havia um esforço de síntese daqueles que queriam encarar de forma nova o passado brasileiro. Tinham agora uma preocupação dita cientificista, tendo como principais referências o pensamento de um Comte, Buckle, Darwin, por exemplo. Assim podemos inferir que a preocupação “cientificista” de Capistrano era representativa de toda uma geração. No pós-guerra do Paraguai, essa geração quer reinterpretar a história brasileira, privilegiando não mais o Estado imperial, como F. A. de Varnhagen o fez, mas “o povo e sua constituição étnica”, daí a resposta subliminar por que não escreveu Capistrano de Abreu uma História do Brasil. Além disso, a formação intelectual de Capistrano se deu nesse ambiente determinista, cientificista e obviamente racista (cf. Braga. 2009: 382 e ss.).
Discutia-se, então, no plano das ideias, o positivismo, o determinismo climático, o determinismo biológico, o spencerismo, o comtismo, o darwinismo, as teorias raciais etc. O diferencial do ponto de vista da pesquisa historiográfica é que, Capistrano inseriu em sua análise de viajantes estrangeiros, o folclore. Realizou uma síntese admirável, pelo rigor e justeza. Demais é bem escrita, com estilo e estrutura notáveis, não comuns na produção nacional, como se sabe. Isto porque contém visões pioneiras, julgamentos audaciosos, mas quase sempre justos. Capítulo de história colonial, de 1907, é considerado seu melhor livro, o mais orgânico, trabalhado, original e fecundo. É um dos bons livros da historiografia: foi o primeiro grande sobre a Colônia, a ser atingido como o maior só em 1942, quando Caio Prado Júnior lançou Formação do Brasil Contemporâneo. Por 35 anos dominou absoluto e continua a ser lido com prazer e proveito.
A história seria compreendida como o universo: “um mecanismo autorregulado, submetido a leis, passível de um conhecimento objetivo”. A ciência passava de método a visão de mundo, desvalorizando as verdades trazidas pela tradição, pela religião, pela filosofia. Euclides da Cunha, Oliveira Vianna, Silvio Romero, Tobias Barreto, enfim, a geração de Capistrano de Abreu, discutia darwinismo social, “luta pela vida”, no sentido nietzscheano, seleção das espécies e defendia um conhecimento anti-metafísico, empírico, histórico entre outros. O pensamento histórico-social brasileiro deste período, portanto, estava dividido.
No Brasil, nos fins do século XIX, ninguém mais que Tobias Barreto concorreu para a renovação da nossa cultura; chefiava a Escola do Recife (cf. Nabuco, 1977; Morais Filho, 1985; Schwartzman, 1979) cujos principais expoentes foram: Sílvio Romero, Clóvis Bevilacqua, Artur Orlando, José Higino, Capistrano de Abreu, Martins Junior, Araripe Junior e Graça Aranha. Polêmico e revolucionário de ideias teve que enfrentar uma plêiade de opositores; estes o combatiam com ardor, sentimento comum entre os intelectuais que se recusam aceitar avanços socioculturais; no campo das ideias, seus opositores mostravam-se arredios, tensos com a possibilidade de quaisquer mudanças; reacionários, combatiam as mudanças que ocorriam pelo espírito e pelas ideias do Realismo que influenciava as faculdades de Direito do Recife e de São Paulo.
Diz Antônio Carlos Amora, na sua História da Literatura Brasileira, que, no Recife, Tobias Barreto, estudante de Direito já “veterano”, com quase 30 anos, ataca violentamente a filosofia espiritualista e católica. A atitude do líder acadêmico galvanizou as aspirações revolucionárias dos estudantes que o cercavam. Amora firma, por exemplo: “Em 1868, o clima de insatisfação ante os rumos da realidade nacional, criado pelos intelectuais, atinge o grau de saturação tensional”. Esse momento propiciou a ação da Escola do Recife, tendo Tobias como seu líder. Tobias reagiu aos ataques de seus muitos inimigos sempre com bravura, e, em contrapartida, suas polêmicas atingiram o paroxismo da violência. Legou-nos uma vasta e importante obra sobre seus temas prediletos: direito, filosofia, literatura e música. No gênero poesia, seu poema Dias e Noites representa ao lado de Castro Alves, a corrente condoreira dos fins do romantismo. Com Tobias Barreto e a sua Escola do Recife nasceu importante dimensão do espírito crítico no Brasil.
A Escola de Recife mantinha a distinção metodológica entre “natureza e cultura”, resistindo em tese ao cientificismo sociológico. Este dominava a Escola Politécnica do Rio de Janeiro, a Escola de Minas de Ouro Preto, o Colégio Pedro II, a Escola Normal, o Colégio e a Escola Militares, a Escola Naval, as Faculdades de Medicina e Direito, que formavam os profissionais liberais, políticos, intelectuais, empresários, impregnados de Comte, Spencer e Darwin. O pensamento de Capistrano revela essa divisão e confusão da discussão intelectual no Brasil do século XIX. Para Wehling (1999), foi o estudo de documentos, o primado do objeto, que “converteu Capistrano do cientificismo à ciência”. Isto porque sob a influência de Ranke, Niebhur e Humboldt, ele passará a dar ênfase aos documentos, à sua crítica e interpretação, sem buscar leis, mas a compreensão.
Para sermos breves, indicamos traços sobre as consequências da Semana de 22 na literatura cearense: O Grupo Clã, ativo no Ceará entre os anos de 1940 e 1950, foi um dos movimentos influenciados tanto pela renovação quanto pela ruptura da Semana de 22.

Em seu depoimento, Pontes (2002) afirmava o seguinte: Há dez anos escrevi o artigo “Semana de Arte de 1922, raízes e consequências”, publicado no livro Modernismo: 80 anos (Fortaleza: Academia Cearense de Letras, 2002). Penso ter alinhado no referido artigo as contribuições da Semana de 22 na literatura, nas artes plásticas, na arquitetura, na música erudita, na popular, e no teatro de nosso País.
Este ano, afirma o prócer cearense, quando a Semana chega aos 90 anos, perguntam-me: “Quais as consequências deste evento nonagenário na literatura cearense?”
Ora, antes de qualquer outra consideração, é preciso sublinhar que o espírito iconoclasta daquele evento ocorrido em São Paulo na segunda década do século XX, já se manifestara pioneiramente no Ceará com a fundação da Padaria Espiritual a 30 de maio de 1892. Na verdade, desde o início, a ação da Padaria Espiritual foi, no dizer de Antônio Sales, ´uma festa original, onde a boa gargalhada substituía o tonitruar da retórica cediça e narcótica, destoando travessamente das lúgubres noitadas que se passam no recinto dessas sociedades literárias, hirtas e parvas com seus estatutos maçudos, as suas artes de irmandade do Sacramento e a sua discurseira inoperante`”.
Estas palavras de Antônio Sales são típicas de um discurso tanto de ruptura quanto de renovação cultural que ocorre entre nós bem antes da performance havida em São Paulo. Outra manifestação precursora do Modernismo no Ceará é apontada por Otacílio Colares em “Lembrados e esquecidos” (Fortaleza: IUC, 1975) quando escreve: “Como Menotti del Pichia e Tasso da Silveira, simbolistas aos primeiros passos e assim, precursores do modernismo de vanguarda, assim também pode ser considerado Mário da Silveira, milagre de intuição poética no acanhado meio provinciano”, naturalmente o de Fortaleza da década de 1920.
Sânzio de Azevedo, em “Literatura cearense” (Fortaleza: ACL, 1970) inclui Mário da Silveira (autor cujos poemas foram reunidos postumamente sob o título “Coroa de rosas e de espinhos”) no espaço dedicado ao Pré-Modernismo, mas em “Aspectos da literatura cearense” (Fortaleza: UFC/ACL, 1982) conclui o capítulo dedicado a Mário assegurando ao poeta o lugar de “legítimo precursor do Modernismo na poesia cearense”. Já em “O canto novo da raça” (Fortaleza: Tipografia Urânia, 1927), opúsculo de 40 páginas partilhadas por Jáder de Carvalho, Sidney Neto, Mozart Firmeza e Franklin Nascimento, é considerada por Sânzio “o livro inaugural” do Modernismo no Ceará. Em 1929, circulam os dois únicos números de “Maracajá”, um suplemento literário do jornal O Povo, que trazia estampada uma clara identificação: “Folha modernista do Ceará”. Tomando para título o designativo do conhecido gato silvestre, esta folha se integrava ao espírito nativista inicial do Modernismo brasileiro.
Após “Maracajá”, em 1931, vem a público “Cipó de fogo”, título de folha independente também consonante com o espírito modernista que, entretanto, fica apenas no primeiro número. Na fase inicial do Modernismo cearense, compreendida esta como a dos anos 1920 e 1930, destacam-se os escritores Jáder de Carvalho, Franklin Nascimento, Sidney Neto, Mozart Firmeza, Filgueiras Lima, Demócrito Rocha, Heitor Marçal, Martins d´Alvarez e Rachel de Queiroz.
Na segunda fase, que compreende os anos 1940 e 1950, tendo por balizas históricas a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, prepondera o Grupo Clã, que agregou nomes importantes como os de Joaquim Alves, Fran Martins, Antonio Girão Barroso, João Clímaco Bezerra, Moreira Campos, Milton Dias, José Alcides Pinto, Francisco Carvalho, Iranildo Sampaio, Cid Carvalho, entre outros. A década de 1960 assiste ao surgimento do Grupo SIN de Literatura, que mesmo de existência breve, produziu substancialmente e renovaram, sobretudo a poesia, o ensaio e a crítica. Integraram o SIN, entre outros: Barroso Gomes, Horácio Dídimo, Linhares Filho,Barros Pinho, Roberto Pontes, Rogério Bessa, Pedro Lyra, Leda Maria, Yeda Estergilda, Carlos Alberto Bessa. De 1970 a 1980 destacaram-se escritores como Francisco Sobreira, Caetano Ximenes Aragão, Gilmar de Carvalho, Nilto Maciel, Airton Monte, Batista de Lima, José Hélder de Souza, Mario Pontes, Ana Miranda, Dimas Macedo, Audifax Rios, Carlos Augusto Viana e Virgílio Maia. De 1990 até o presente há que registrar as presenças de Jorge Pieiro, Ronaldo Correia de Brito, Dimas Carvalho, Paulo de Tarso Pardal, Pedro Salgueiro, Astolfo Lima Sandy, Rinaldo de Fernandes, Tércia Montenegro, Luciano Bonfim, Natalício Barroso, Rodrigo Marques, Ilo Barroso.
Essa nominata incompleta, em razão dos limites deste artigo, seria indeclinável se não houvesse ocorrido a Semana de Arte Moderna de 1922, cujo espírito de ruptura já se achava latente entre nós, conforme antes assinalado. Nossa força inventiva continua a manar dos precursores e dos realizadores da Semana de Arte de 1922, porque vivemos uma busca constante de identidade, sabedores que somos hoje de que “só há espaço na comunidade universal para o povo que se souber profundamente arraigado em seu espírito fundador”. Assim terminei o artigo dos 80 anos da Semana, tal qual faço agora, quando a Semana se torna nonagenária.
Bibliografia geral consultada:
BRAGA, Ubiracy de Souza, Varnhagen, a Cultura, a Política e a História. Notas sobre a Influência na Formação de Capistrano de Abreu, Gilberto Freyre e Florestan Fernandes para Compreender o Brasil. Tese de Titular em Sociologia. Fortaleza: UECE - Universidade Estadual do Ceará, 2009; 762 páginas; FREYRE, Gilberto, Social Life in Brazil in the Middle of the 19th Century. Tesis PhD. University Columbia, 1923; LYOTARD, Jean-François, Discours, Figures. Paris: Klincksieck, 1974; Idem, O Pós-Moderno. 4ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993; Jornal O Estado de São Paulo, 17.8.1986; CARVALHO, Elysio, As Modernas Correntes Esthéticas na Literatura Brasileira. Rio de Janeiro; Paris: Garnier Livreiro Editor, 1907; HORKHEIMER, Max, Autoritäter Staat. Die Juden und Europa Vernunft und Selsterhaltung Aufsätze 1939-1941. Verlag de Munter/Amsterdam, 1967; TAVARES, José Nilo, Conciliação e Radicalização Política no Brasil. Ensaios de História Política. Petrópolis (RJ): Vozes, 1982a; Idem, “Imprensa na década de vinte: sociedade, política e ideologia”. In: Separata da Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte: UFMG, 1982b; RIBEIRO, Darcy, O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1995; TEIXEIRA, Anísio, Estadista da Educação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978; AGAMBEN, Giogio, Lo que queda de Auschwitz. Valencia: Pré-textos, 2000; ALBUQUERQUE, Manoel Maurício de, “A Propósito de Rebelião e Trabalho Escravo”. In: Encontros com a Civilização Brasileira, nº 5. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, novembro de 1978; Idem, Pequena História da Formação Social Brasileira. 4ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1986; ANDRADE, Mario de, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986; BRECHT, Bertolt, Furcht und Elend des Dritten Reiches. Suhrkamp Verlag: Frankfurt am Main, 1957; Idem, Escritos sobre Teatro. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1970 (volumen 1); Idem, Über Politik und Kunst. Suhrkamp Verlag: Frankfurt am Main, 1971; CAMPOS, Haroldo de (direção), Maiakóvski. São Paulo: Editora Perspectiva, 1989; MORAIS FILHO, Evaristo, Medo à Utopia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985; NABUCO, Joaquim, O Abolicionismo. 4ª edição. Petrópolis (RJ): Vozes, 1977; SCHWARTZMAN, Simon, Formação da Comunidade Científica no Brasil. São Paulo/Rio de Janeiro: CPA/Editora Nacional/Finep, 1979; CANDIDO, Antônio, Formação da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1959; CARONE, Edgard, Revoluções do Brasil Contemporâneo - 1922/1938. São Paulo: DESA/São Paulo Editora, 1965; CHASIN, José, O Integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hiper-tardio. São Paulo: Editora Ciências Humanas, 1978; CHAUÍ, Marilena de Souza, “Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira”. In: Marilena Chauí e Maria Sylvia Carvalho Franco, Ideologia e Mobilização Popular.  Rio de Janeiro: Paz e Terra; Centro de Estudos e Cultura Contemporânea, 1978; DULLES, John W. F., Anarchists and Communists in Brazil, 1900-1935. Austin: University of Texas Press, 1973; WELHING, Arno, Estado, História, Memória. Varnhagen e a construção da identidade nacional. Tese de Titular em História. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; FISCHER, Ernst, A Necessidade da Arte. 9ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983; GONÇALVES, Adelaide, Ceará Socialista. Anno 1919. Fortaleza: Edições UFC; Editora Insular,  2001; Idem, & SILVA, Jorge E., A Imprensa Libertária no Ceará, 1908-1922. São Paulo: Imaginário, 2000; GRAMSCI, Antonio, “Problèmes de Culture. Le racisme, Gobineau et les origines historiques de la philosophie de la práxis”. In: Cahiers de prison. Cahiers 14, 15, 16, 17, 18. Paris: Éditions Gallimard, 1990; GULLAR, Ferreira, Cidades Inventadas. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1997, entre outros.  



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Um comentário:

  1. Mas fica uma pergunta em minha cabeça : Até quando podemos assumir que somos(?) modernos?

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