terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Hannah Arendt: No limiar entre a ética, a política e a rememoração.


                       Hannah Arendt: No limiar entre a ética, a política e a rememoração.
                                                                                       Ubiracy de Souza Braga*
                                                         Dedico à Kaline Chagas com amor e esperança.

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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

            A consciência de Platão à Freud (cf. Rouanet, 1971a; 1971b; 1984; 1985; 1986; 1987; 1989) só começa a ser determinando um objeto, e mesmo os “fantasmas” de uma experiência interna só são possíveis por empréstimo à experiência externa. O “culto da razão” corresponde, pois, ao culto da consciência clara. Portanto, não há vida privada da consciência, e a consciência só tem como obstáculo o caos, que não é nada. Mas em uma consciência que constitui “tudo”, ou, antes, que possui eternamente a estrutura inteligível de todos os seus objetos, sem deixar de lado o “porão de uma filosofia social” (cf. Flickinger, 1986), assim como na “consciência empirista” de Bacon à lógica de Popper ainda não constituem nada. A atenção permanece um poder abstrato, ineficaz, porque ali ela não tem nada para fazer “para si” (Hegel) em termos do “cuidado de si” (Foucault).
A consciência na modernidade, se entendermos que o termo modernus advém do século V, se concordarmos com “la longue durée”, seguindo a trilha aberta por Braudel (1958; 1995; 1996) não está menos intimamente ligada aos objetos em relação aos quais ela “se distrai”, na imagem/movimento (cf. Deleuze, 1983) do que aqueles aos quais ela “se volta”, na imagem/tempo(cf. Deleuze, 1985), e o excedente de clareza do ato de atenção não inaugura nenhuma relação social nova. De outra parte, a “corrupção” da consciência, fenomenologicamente falando, no sentido que emprega Merleau-Ponty funciona como a “essência da consciência para o mal”, ou, “essência da percepção para o mal”, neste caso, para concordarmos nas extremidades com “banality of the devil”, de que falava no limite da experiência humana da consciência a dama da filosofia, Hannah Arendt (1906-1975).
Do ponto de vista conceptual as “formas de corrupção”, variam, mas incluem “categorias da prática”, para lembrarmo-nos de Alain Touraine (1965), tais como o suborno, a extorsão, fisiologismo, nepotismo, clientelismo, corrupção e peculato. Embora se possa facilitar de “negócios criminosos” como o tráfico de  drogas, lavagem de dinheiro, assim como o “tráfico de seres humanos”, de que Marx falava referindo-se à “guerra do ópio”, não se restringe a essas atividades exclusivamente. As atividades que constituem a corrupção ilegal diferem por nação, país, ou, jurisdição. Por exemplo, certas práticas de financiamento político que são legais na plutocracia (Braga, 2010) ou “acracia americana” (cf. Chomsky, 1978), do grego α-, “não” y κράτος, “força, violência” em que estão de acordo, mal comparando de Saddam Hussein a Noam Chomsky, um lugar, podem ser ilegais em outro.
Em alguns casos, “funcionários do governo”, esses macabros “homens de preto”, para lembrarmo-nos do filme norte-americano de 1997, Men in Black (no Brasil, MIB - Homens de Preto e em Portugal, Homens de Negro); de batina ou de avental, ou de Caetano Veloso quando afirma: “enquanto os homens exercem/Seus podres poderes/Morrer e matar de fome/De raiva e de sede/São tantas vezes/Gestos naturais...”. E se naturalizam esses podres poderes tornam difícil distinguir entre as “ações legais” e as “ações ilegais”. Em todo o mundo, calcula-se que a corrupção envolva mais de 1 trilhão de dólares por ano; acabaria “com a fome no ideário de Betinho” (cf. Braga, 2011a). Um estado de corrupção política desenfreada é conhecido, no limite, como uma cleptocracia, o que literalmente significa “governado por ladrões”, mas as oligarquias que tanto roubam aqui quanto roubam lá, impedem quaisquer sentidos de democratização. É mais uma anomalia da democracia em seu “valor universal”.
            Historicamente, com efeito, da Antiguidade aos nossos dias, a condenação da mentira é um princípio ético tradicional. Aristóteles, na Ética a Nicômaco, ao tratar a veracidade no livro IV (1127 a 25-30), diz que por si mesma, ou seja, independente do que diz respeito à justiça e à injustiça, que são do domínio de outra virtude, que “a verdade é nobre e merecedora de aplauso e a mentira é vil e repreensível”. O Talmude na elaboração judaica desta problemática ética, o mau uso do dom da palavra é objeto de múltiplas advertências que equipara, nos seguintes termos, a mentira à pior forma de roubo: “Existem sete classes de ladrões e a primeira é daqueles que roubam a mente de seus semelhantes através de palavras mentirosas”. E contrariando Pascal (1979: 107 e ss.), em seus Pensées, para quem:

“o coração tem suas razões, que a razão não conhece: percebe-se isso em mil coisas. Conhecemos a verdade não só pela razão, mas também pelo coração; é desta última maneira que conhecemos os princípios, é em vão que o raciocínio, que deles não participa, tenta combate-los. Os pirrônicos, que só têm isso como objetivo, trabalham inutilmente” (Pascal, 1979: 107).  
Afirma ainda o Talmude que Deus “odeia a pessoa que fala uma coisa com a sua boca e outra com seu coração”. No sentido inverso à epistemologia e à ética, a mentira, ou mentir, vem do latim mentisse, que quer dizer “mentir”, “imaginar”, “inventar”, de mens, mentis. Mens, mentis, é termo geral da raiz men - pensar - e que designa, por oposição a “corpus”, “o princípio pensante, a atividade de pensar”. Em primeiro lugar, historicamente falando “corpolatria” é o culto exagerado do corpo, desconfiança face aos prazeres, insistência sobre os efeitos de seu abuso para o corpo e para a alma, valorização do casamento e das obrigações conjugais, desafeição em relação às significações espirituais atribuídas ao amor pelos rapazes.
As origens do fascismo alemão remontam a 1919, quando “um grupinho de sete homens se reuniu numa cervejaria de Munique e fundou o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores alemães”. O nome do partido não tardou a ser abreviado na fala popular para “nazi”. Dentro em pouco,
o mais obscuro dos sete surgia como chefe. Chamava-se ele Adolf Hitler e tinha nascido em 1889, sendo filho de um pequeno funcionário aduaneiro da Áustria. O começo de sua vida foi infeliz e desajustado. Rebelde e indisciplinado desde a infância parece ter sido sempre oprimido por um sentimento de frustração. Na escola, perdia tempo desenhando retratos e por fim resolveu ser pintor. Com esse fim em vista dirigiu-se em 1909 para Viena, esperando ingressar na Academia. Foi, porém, reprovado no exame vestibular e durante quatro anos arrastou sua existência obscura como trabalhador ocasional e pintor de pequenos esboços e aquarelas que por vezes conseguia vender a humildes lojas de arte. Enquanto isso, ia alimentando alguns preconceitos políticos de índole violenta” (cf. Burns, 1967: 883, grifos meus).    
            Hannah Arendt, nascida como Johanna Arendt, Linden-Limmer, hoje bairro de Hanôver, Alemanha, em 14 de outubro de 1906 e falecida em Nova Iorque, Estados Unidos, 4 de dezembro de 1975, foi uma filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX. A privação de direitos e perseguição na Alemanha de pessoas de origem judaica a partir de 1933, assim como o seu breve encarceramento nesse mesmo ano, fez-na decidir emigrar. O regime nacional-socialista retirou a nacionalidade dela em 1937, “o que lhe tornou apátrida até conseguir a nacionalidade estadunidense em 1951”. Daí a ideia de que a consciência no âmbito da modernidade opera de outras formas como veremos a seguir.
Trabalhou, entre outras atividades, como jornalista e professora universitária e publicou obras importantes sobre filosofia política, tais como: L`Impérialisme. Les origines du totalitarisme (Paris: Seuil, 1980; 1989),  em que para ela, “nada caracteriza melhor a política de poder da era imperialista do que a transformação de objetivos de interesse nacional localizados, limitados, e, portanto, previsíveis, em busca ilimitada de poder, que ameaça devastar e varrer o mundo inteiro sem qualquer finalidade, sem alvo nacional e territorialmente delimitado e, portanto, sem nenhuma direção previsível”. Foi a primeira intelectual contemporânea a entender que o imperialismo não se limitava ao expansionismo dos grandes grupos econômicos, tal como antes entenderam J. A. Hobson, Rosa Luxemburgo e Vladimir Ilitch Lenin (ou Lenine), em russo: Владимир Ильич Ленин; nascido Vladimir Ilyitch Uliánov, Владимир Ильич Ульянов; Simbirsk, 22 de abril de 1870-Gorki, 21 de janeiro de 1924 (cf. Reis Filho, 2005).
As corporações graúdas, por mais poderosas e ambiciosas que possam ser não têm densidade suficiente para mover uma nação inteira a favor de uma guerra de conquista ou ocupação se não contassem “com a simpatia e o ardor da multidão local”. O imperialismo, segundo Arendt, em qualquer tempo da história resulta dessa esdrúxula aliança “entre o patacão de ouro e os réis de cobre, entre o comandante atrás de glórias e o pé rapado em busca do saque”. Fato político, aliás, que qualquer historiador da Roma Antiga sabia de Lewis Mumford a Max Weber em seu The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism (New York: Charles Scribner’s Sons, 1958). Quando os vencidos por Roma, trazidos em cativeiro pelos césares em triunfo, eram arrastados pelas vias da cidade, quem mais os apupava e fazia mofa dos caídos era o populacho.
De certo modo, é o que explica a impressionante adesão de americanos e ingleses à campanha militar de “arrasa-Iraque” desencadeado pelo consórcio Bush-Blair a partir de 2002, como já nos referimos noutro lugar. O fato dos seus pilotos e soldados destruírem as cidades árabes e boa parte da infraestrutura delas, além de deixarem campear a pilhagem não os comove nem os demove, o que torna a “leitura” de Arendt ímpar neste aspecto da teoria política. Sem temor a erro, ela rechaçava ser classificada como “filósofa” e também se distanciava do termo “filosofia política”; preferia que suas publicações fossem classificadas dentro da “teoria política”, fato com o qual concordamos inteiramente, porque envolve o estudo da estrutura (e das mudanças de estrutura) e dos processos de governo - ou qualquer sistema equivalente de organização humana que tente assegurar segurança, justiça e direitos civis.
Em 1924, começou seus estudos na universidade de Marburg e durante um ano assistira às aulas de filosofia de Martin Heidegger e de Nicolai Hartmann, e as de teologia protestante de Rudolf Bultmann, além de o grego. Heidegger, pai de família de 35 anos, e Arendt, estudante dezessete anos mais jovem que ele, “foram amantes” (cf. Safranski, 2005; Ettinger, 2007), ainda que tivessem de manter em segredo a relação por causa das aparências que sempre enganam. No começo de 1926, ela não aguentava mais a situação e decidiu trocar de universidade, indo para a universidade Albert Ludwig de Freiburg, para aprender com Edmund Husserl. Ela também estudou filosofia na universidade de Heidelberg e se formou em 1928 sob a tutoria de Karl Jaspers, e admiradora da obra de Soren A. Kiekegaard, onde é clara a tese segundo a qual “o irônico, ao contrário, é uma profecia ou uma abreviatura de uma personalidade” (In: Om Begrebet Ironi med Stadigt Hensyn til Socrates, af S. A. Kierkegaard, Kjobenhavn, 1841, SV (1), XIII 95), redigiu a tese “O Conceito de Amor em Santo Agostinho” (1997).
                                    
Escólio: Hannah Arendt, expressa outra visão do imperialismo: a bio politikos é inferior à bios theõrētikos porque somente a theōrein, isto é, a “visão” que conduz ao conhecimento tem uma dignidade própria (cf. Arendt, 2009).
Em princípio, para Hannah Arendt, como para Santo Agostinho, há uma expansividade, o desejo. Estrutura fundamental do ente, o desejo é a forma de um apetite que instala o querente na solidão, expõe-no a todas as angústias e a todas as audácias, mas atraiçoa uma dinâmica irrecusável, “a vontade de ser feliz”. Felicidade, alegria, ou qualquer outro nome que se lhe chame, o objeto do desejo revela o fim último do ser criado: ser feliz. O principal objetivo de Hannah Arendt é tornar explícito aquilo que Santo Agostinho apenas diz implicitamente, ou seja, ela desmonta toda a linha de pensamento do autor e desce até às profundezas do seu pensar, para revelar o lado oculto do que está dito e, eventualmente, aquilo que também ficou por dizer: interdito. Amor, desejo, solidão, felicidade, alegria, caridade, cobiça, fé, vida, morte, medo, amor ao próximo e amor a Deus são apenas alguns dos conceitos que se encontram nesta obra, com o único propósito de explicar o fim último de todo o ser humano: ser feliz. Enfim, a amizade com Karl Jaspers duraria até a morte do filósofo. O juízo negativo do tempo de Marburg na carta a Jaspers tinha também um significado tático. Naquele tempo Jaspers pensava em deixar Heidelberg e queria saber se Heidegger poderia lhe recomendar que fosse a Marburg. Mas Heidegger não podia, pois sabia que não era só a situação da universidade, mas decerto a oscilação entre esses anos tão produtivos para ele. 
Pois o homem pode pensar à medida que tem a possiblidade para tal. Tal ser-possível, de acordo com Heidegger (1961; 2006; 2007), porém, “ainda não nos garante que o possamos”. Pois ser na possiblidade de algo quer dizer: permitir que algo, segundo seu próprio modo de ser, venha para junto de nós; resguardar insistentemente tal permissão. Sempre podemos somente isso para o qual temos gosto - isso a que se é afeiçoado, à medida que o acolhemos. Verdadeiramente só gostamos do que, previamente e a partir de si mesmo, dá gosto. E nos dá gosto em nosso próprio ser à medida que tende para isso. Através desta tendência, reivindica-se nosso próprio modo de ser. A tendência é conselheira. “A fala do aconselhamento dirige-se ao nosso próprio ser, para ele nos conclama e, assim, nos tem”.
Na verdade, ater significa: “cuidar, guardar”. O que nos atém ao modo de ser aí nos atém somente na medida em que nós, a partir de nós mesmos, guardamos isso que nos atém. Nós o guardamos, se nós o deixamos fugir da memória. A memória é a concentração do pensamento. Em relação a que? Em que medida isso que nos atém precisa ser cuidadosamente pensado? À medida que, por si mesmo, é o que cabe pensar cuidadosamente. Se isso é assim pensado, então é presenteado com o pensar da lembrança. Nós lhe presenteamos o pensamento que recorda porque dele gostamos como sendo a palavra conselheira de nosso modo próprio de ser. Defendemos a tese singular: “só podemos pensar se temos gosto pelo que em si é o que cabe pensar cuidadosamente” (cf. Heidegger, 2007: 111 e ss).
Para Heidegger, o tempo em Marburg trouxe a chance surpreendente - os teólogos do lugar chamavam isso de Kairós, “a grande oportunidade” - de um tipo em especial de propriedade. Um encontro que - como mais tarde admitirá sua esposa Elfride - se tornou a paixão de sua vida. Em começos de 1924 chegara em Marburg,
uma estudante judia de 18 anos, querendo estudar com Bultmann e Heidegger. É Hannah Arendt. Vinha de uma boa família judia assimilada de Königsberg, onde crescera. Já aos catorze anos sua curiosidade filosófica despertou. Leu a Crítica da Razão Pura, de Kant, dominava grego e latim tão bem que aos dezesseis anos fundou um círculo de estudos e leituras de literatura antiga. Ainda antes dos exames de finais do liceu, que frequentara em Königsberg como aluna externa, ela ouvira Romano Guardini, em Berlim, e lera Heidegger. Para ela, filosofia tornara-se uma aventura. Em Berlim também ouvira falar em Heidegger. Mais tarde escreverá a respeito: ´O boato dizia bem simplesmente: o pensar voltou a ser vivo, os tesouros culturais do passado que se julgavam mortos falam, e vê-se que produzem coisas bem diferentes do que, desconfiados, suspeitávamos. Existe um mestre; talvez se possa aprender o pensar... esse pensar que emerge como paixão do simples fato de ser-nascido-no-mundo e ... (podendo) ter tão pouca finalidade... quanto a própria vida`” (cf. Safranski, 2005: 174).   
Arendt havia levado uma vida muito recatada em Marburg como consequência do segredo de sua relação com Heidegger; mantinha amizade apenas com outros alunos, como Hans Jonas, e com seus amigos de Königsberg. Em Heidelberg, ampliou seu círculo de amigos, a que pertenceram Karl Frankenstein, que em 1928 apresentou uma dissertação histórico-filosófica, Erich Neumann, seguidor de Jung, e Erwin Loewenson, um ensaísta expressionista. Jonas também se mudou para Heidelberg e realizou alguns trabalhos sobre Santo Agostinho. Outro círculo de amigos se abriu graças a sua amizade com Benno von Wiese e seus estudos com Friedrich Gundolf, que lhe havia recomendado Jaspers. Sua amizade com Kurt Blumenfeld, diretor e porta-voz do movimento sionista alemão, cujos estudos tratavam a chamada questão judaica, antevista por Marx, e a assimilação cultural também foi importante. Hannah Arendt agradeceu-lhe em uma carta de 1951 o seu próprio entendimento da situação dos judeus.
Desnecessário dizer que o complexo relacionamento entre a teórica política Hannah Arendt e o filósofo Martin Heidegger é recuperado num livro da editora Relógio D`Água, que chega às livrarias quando o Teatro Aberto tem em cena uma peça sobre o mesmo tema. Melhor dizendo, “Hannah Arendt e Martin Heidegger”, escrito pela docente Elzbieta Ettinger, descreve com recurso a informação histórica e à correspondência trocada pelos dois pensadores alemães, ela judia e ele “simpatizante nazi” (cf. Farias; Boeno, 2010), a atribulada relação que mantiveram durante meio século, entre 1925 e 1975, ano da morte de Arendt. Cruzando os planos erótico e intelectual, e a relação entre os dois eminentes pensadores, foi marcada por um longo interregno entre 1933 e 1950 ipso facto sobreviveu ao matrimónio de Martin Heidegger e aos dois casamentos de Hannah Arendt.
                                   
Livro “Hannah Arendt e Martin Heidegger”, escrito pela docente Elzbieta Ettinger (2007).
Em 1933 (ano da tomada do poder de Hitler) Arendt foi “proibida de escrever uma segunda dissertação que lhe daria o acesso ao ensino nas universidades alemãs por causa da sua condição de judia”. O seu crescente envolvimento com o sionismo levá-la-ia a colidir com o antissemitismo do Terceiro Reich - o que a conduziria, seguramente, à prisão. Conseguiu escapar da Alemanha e passou por Praga e Genebra antes de se mudar para Paris, onde trabalhou pelos 6 anos seguintes com crianças judias expatriadas. Hannah Arendt ao abordar o tema educação, fez crítica a educação moderna. Hannah defendeu o conservadorismo na educação, mas não na política. Para a pensadora, o maior erro da educação foi ter colocado em prática “o absurdo tratamento das crianças como uma minoria oprimida carente de libertação”.
Arendt defendia a tese de que cabe aos adultos a condução das crianças. Para ela a função da escola “é ensinar às crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver”. Era a favor do uso autoridade na sala de aula, mas sem autoritarismo, pois o mundo deveria, segundo seu pensamento, ser apresentado ao aluno de maneira a estimular a mudá-lo. Dessa maneira, Arendt defendia que os pais deveriam ser os responsáveis pelo bem estar vital de seus filhos e a escola, a responsabilidade de desenvolver as qualidades e talentos pessoais: “Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças e é preciso proibi-la de tomar parte na educação”, escreve Arendt. Além disso, conheceu e tornou-se amiga do crítico literário e filósofo marxista Walter Benjamin (cf. Braga, 2011c) que em sua abordagem manifestou-se numa surpreendente quantidade de novos conceitos, originais, tais como: apocatástase histórica, choque, tempo-de-agora, rememoração, aura, valor de culto, valor de exposição etc. A noção de “rememoração” se articulada entre a questão ética e política que na obra de Arendt terá como background, se não é um truísmo, importante papel na história do antissemitismo do Terceiro Reich. O cineasta Steven Spielberg será eloquente neste aspecto sócio-político com o filme, A Lista de Schindler (Schindler´s List, EUA, 1993) como será visto a seguir.
 Foi presa (uma segunda vez) na França conjuntamente com o marido, o operário e “marxista crítico” Heinrich Blutcher, e acabaria em 1941 por partir para os Estados Unidos, com a ajuda do jornalista americano Varian Fry. Heinrich Blücher (1899-1970) foi um alemão poeta e filósofo. Ele fora um membro do Partido Comunista da Alemanha até 1928, mas logo rejeitou o stalinismo e deixou o partido em protesto contra suas políticas “stalinistas” de extermínio. Ele se tornou um membro de um pequeno grupo anti-stalinista chamado Oposição Partido Comunista. Como um comunista (embora anti-stalinista), Blücher, então um professor universitário (Privatdozent), teve que fugir da Alemanha após a ascensão do nacional-socialismo. Ele se casou com Hannah Arendt, em França, e emigrou para Nova York em 1941. Blücher incentivou sua esposa a se envolver com o marxismo e teoria política, embora em última análise, o seu uso de Karl Marx não ocorresse de forma ortodoxa, como demostrado em obras como As Origens do Totalitarismo (1951) e A Condição Humana (1958). Blücher também cunhou o termo “princípio da anti-política” para descrever o totalitarismo e a destruição de um espaço de resistência - um termo tomado de empréstimo tanto por Arendt e Karl Jaspers.
                                  
           A barbárie dos campos de concentração (Umsiedlung) e extermínio (Arbeitseinsatz im Osten).
Arendt defendia um conceito de “pluralismo” no âmbito político. Graças ao pluralismo, o potencial de uma liberdade e igualdade política seria gerado entre as pessoas (cf. Arendt, 2009). Importante é a perspectiva da inclusão do Outro. Em acordos políticos, convênios e leis, devem trabalhar em níveis práticos pessoas adequadas e dispostas. Como frutos desses pensamentos, Arendt se situava de forma crítica ante a democracia representativa e preferia um “sistema de conselhos” ou formas de “democracia direta”. Entretanto, ela continua sendo estudada como filósofa, em grande parte devido a suas discussões críticas de filósofos como Sócrates, Platão, Aristóteles, Immanuel Kant, Martin Heidegger (2001) e Karl Jaspers, além de representantes importantes da filosofia moderna como Maquiavel e Montesquieu.
Justamente graças ao seu pensamento independente, a “teoria do totalitarismo” (1980; 1989; 2003; 2008a; 2008b), ou seja, a conhecida expressão: “Theorie der totalen Herrschaft”, seus trabalhos sobre filosofia existencial (1993) e sua reivindicação da discussão política livre (2009), Arendt tem um papel central nos debates contemporâneos, daí o presente artigo. Como fontes de suas investigações Arendt usa, além de documentos filosóficos, políticos e históricos, biografias e obras literárias. Esses textos são interpretados de forma literal e confrontados com o pensamento de Arendt. Seu sistema de análise - parcialmente influenciado por Heidegger (2001) - a converte em “uma pensadora original situada entre diferentes campos de conhecimento e especialidades universitárias”. O seu devenir pessoal e o de seu pensamento mostram um importante grau de coincidência.
A etimologia é explicativa do problema colocado por Hannah Arendt, quando diz que “a ação requer imaginação”, ou seja, a capacidade de pensar que as coisas podem ser diferentes do que são para serem mudadas. Entretanto, essa mesma imaginação que permite contestar os fatos para se puder ter a iniciativa de transformá-los permite desconsiderá-los, o que, em outras palavras, quer dizer que a capacidade de mudar fatos e a capacidade de enganar fatos através da imaginação está claramente relacionada. Desse inter-relacionamento, aliás, trata o padre Vieira no seu admirável Sermão da Quinta Dominga da Quaresma, que é uma reflexão ético-histórica etnológica sobre a mentira, mas que não trataremos agora.
            A atitude que Arendt detecta em Homero, que, na Ilíada (IX, 312-3), registra o diálogo de Aquiles ao “engenhoso Odisseu”: “Tal como do Hades as portas, repulsa me causa a pessoa/que na alma esconde o que pensa e outra coisa na voz manifesta”. Como é sabido, Homero cantou em versos tanto os feitos dos vencidos - os troianos - quanto os dos vitoriosos - os aqueus - e inspirou Heródoto que como “pai da História”, se ocupou tanto com os feitos dos gregos quanto com os dos bárbaros, no exato momento em que se tornou independente da poesia, ou seja, dos mitos, vale dizer, da imaginação, que permite a astúcia da mentira, negativamente, ou, positivamente, da razão. 
            Na modernidade da qual falamos, a perda de parâmetros define sem dúvida o mundo moderno em sua facticidade e não pode ser revertida por qualquer espécie de retorno aos bons tempos nem pela promulgação arbitrária de novos parâmetros e valores só e, por conseguinte, uma catástrofe no mundo moral se se supõe que as pessoas são efetivamente incapazes de julgar as coisas per se, que sua faculdade de julgar é inadequada para formar juízos originais e que o máximo que podemos exigir delas é a correta aplicação de regras conhecidas e derivadas de parâmetros já estabelecidos. O indivíduo, ator, identidade, grupo social, classe social, etnia, minoria, movimento social, partido político, corrente de opinião pública, poder estatal, todas estas “manifestações de vida” no sentido que emprega Georg Simmel (1971; 1988), não mais se esgotam no âmbito da “sociedade nacional”, o que nos faz admitir que a diferenciação em comunidades locais, tribos, clãs, grupos étnicos, nações e até mesmo Estados, perderam ao menos algo do seu significado anterior.
Na sociedade global, se me permitem uma digressão, generalizam-se as relações, os processos e as estruturas de dominação e apropriação, antagonismo e integração. Modificam-se os indivíduos, as coletividades, as instituições, as formas culturais, os significados das coisas, gentes e ideias, vistos em configurações histórico-sociais. Enfim, se as ciências sociais nascem e desenvolvem-se como forma de autoconsciência científica da realidade social, no sentido em que Hegel formula a questão da autoconsciência (“para si”) pode-se imaginar que elas podem ser seriamente desafiadas quando essa realidade já não é mais a mesma “em si”. Nesse sentido é que a formação da sociedade global, mais do que nunca pode envolver novos problemas epistemológicos, além de ontológicos, posto que o problema da história refere-se à história do problema e inversamente.
            Mal entendidos semelhantes associam-se à noção do “grande homem”, a quem Hegel foi o primeiro a discutir filosoficamente. Como o super-homem (Übermensch) de Nietzsche, o herói hegeliano foi mal compreendido e equivocadamente visto “como o protótipo para o homem subumano do fascismo e do nazismo”. Mas Hegel deu origem a esses movimentos de maneira muito mais sutil. Ao escrever sobre o “grande homem”, ele pensava em Napoleão. O que tem a dizer sobre ele é verdadeiro, ainda que descreva apenas um aspecto do fenômeno da personalidade histórica mundial. Existe a enorme dificuldade neste desafio, que fazer justiça quer ao filme de Alfred Hitchcock como a um resumo da noção de Übermensch de Nietzsche. Podemos dizer, no entanto, que esta noção de super-homem é a culminação da sua visão sobre uma nova moralidade. É a experiência de uma “vontade de poder” numa forma elevada, refinada e modelada na vida de um excelente artista criativo, que faz da sua própria vida uma obra de arte. Esta vontade de poder poderá, assim, ser entendida como o impulso inato de todos os seres vivos para adquirirem e expressarem o seu poder. De acordo com Nietzsche, todos são impulsionados por esta vontade de poder e a nossa tarefa será expressá-la de forma elevada.
E se a história, como Hegel sustenta, é o “autodesenvolvimento do Espírito, a realização da ideia divina”, de um plano cósmico, então o homem histórico deve ser um em que se encontrem as potencialidades de seu tempo, a sua situação histórica e como Friedrich Nietzsche é um nome universal e o nazismo é e representa, pois, decadência humana, essa forma de totalitarismo muito bem descrita e explicada por Hannah Arendt, necessitava de justificações filosóficas, ipso facto “não trepidaram em falsificar as obras de Nietzsche, ao expurgar muitas passagens importantes que acusavam o povo alemão e ao deturpar outras”. Dado que o preconceito se antecipa ao juízo recorrendo ao passado, sua justificação temporal se limita aos períodos da história - em termos quantitativos a maior parte dela - em que o novo é relativamente raro e o velho predomina no tecido político e social. Em nossa utilização geral, afirma Arendt, “a palavra juízo tem dois significados que se devem distinguir com clareza, mas que se confundem sempre que falamos”.
Juízo significa, primeiramente, organização e subsunção do individual e particular  ao geral e universal, procedendo-se então a uma avaliação ordenada com a aplicação de parâmetros pelos quais se identifica o concreto e de acordo com decisões. Por trás de todos esses juízos há um prejulgamento, um preconceito. Somente o caso individual é julgado, não o próprio parâmetro ou a questão de ele ser ou não uma medida adequada do objeto que está sendo medido. Num dado momento, emitiu-se um juízo sobre o parâmetro, mas agora esse juízo foi adotado, tornando-se, por assim dizer, um meio para se emitirem futuros juízos. Mas juízo pode significar algo totalmente diferente e sempre significa de fato quando nos confrontamos com algo que nunca vimos e para o que não temos nenhum parâmetro à disposição.
Esse juízo que não conhece parâmetro só pode recorrer à evidência do que está sendo julgado, e seu único pré-requisito é a faculdade de julgar, o que tem muito mais a ver com a capacidade de discernir do que com a capacidade de organizar e subordinar. Tais juízos sem parâmetros nos são bastante familiares quando se trata de questões de estética e gosto, que, como observou Kant, não se podem discutir, mas de que se pode, seguramente, discordar e concordar. Na nossa vida cotidiana isso se verifica sempre que dizemos, “em face de uma situação desconhecida, que fulano ou beltrano fez um juízo correto ou equivocado” (cf. Arendt, 2009: 154-155). Melhor dizendo, em toda crise histórica, são os preconceitos os primeiros a se esboroar e deixar de ser confiáveis, ipso facto,
é essa pretensão de universalidade que distingue muito claramente ideologia de preconceito (sempre parcial por natureza). A ideologia afirma peremptoriamente que não devemos mais nos fiar em preconceitos - declarados como literalmente inapropriados. A falta de padrões no mundo moderno - a impossibilidade de formar novos juízos sobre o que aconteceu e o que acontece todos os dias com base em padrões sólidos, reconhecidos por todos, e de subsumir esses eventos a princípios gerais bem conhecidos, assim como a dificuldade, estreitamente associada, de se proverem princípios de ação para o que deve acontecer agora - tem sido frequentemente descrita como niilismo inerente à nossa época, como desvalorização de valores, uma espécie de crepúsculo dos deuses, uma catástrofe na ordem moral do mundo. Todas essas interpretações pressupõem tacitamente que só se pode esperar que os seres humanos emitam juízos se tiverem parâmetros, que a faculdade de julgar não é, portanto, mais do que a habilidade de consignar casos individuais aos seus lugares corretos e adequados dentro de princípios gerais aplicáveis e sobre os quais estão todos de acordo” (Arendt, 2009: 155-156).
            Enfim, o primeiro livro “As origens do totalitarismo” (cf. “L`Impérialisme. Les origines du totalitarisme”, 1951) consolida o seu prestígio como uma das figuras maiores do pensamento político ocidental. Arendt assemelha de forma polémica o nazismo e o socialismo, como ideologias totalitárias, isto é, com uma explicação compreensiva da sociedade, mas também da vida individual, e mostra como a via totalitária depende da “banalização do terror” (“banality of the devil”), da manipulação das massas, do acriticismo face à mensagem do poder. Hitler e Stalin seriam duas faces da mesma moeda tendo alcançado o poder por terem explorado a solidão organizada das massas. Sete anos depois publica “A condição humana” e enfatiza a importância da política como ação e como processo, dirigida à conquista da liberdade.
Publica depois “Sobre a Revolução” (1963), talvez o seu maior tributo para o pensamento liberal contemporâneo, e examina a Revolução clássica francesa e a Revolução Americana, mostrando o que têm de comum e de diferente, e defendendo “que a preservação da liberdade só é possível se as instituições pós-revolucionárias interiorizarem e mantiverem vivas as ideias revolucionárias”. Lembraria ipso facto os seus concidadãos americanos (entretanto adquiriria a nacionalidade americana) que se se distanciassem dos ideais que tinham inspirado a revolução americana perderiam o seu sentido de pertencer e identidade. O que importa que se acolha é o direito de sua opinião, pautado na coisa, através da qual podemos ambos chegar a nos por de acordo com relação à coisa. O que se diz é que não referimos sua opinião a ele, mas ao próprio opinar e supor. Quando temos em mente realmente o outro como individualidade, como ocorre na conversação terapêutica ou no interrogatório de um acusado, realmente não se pode falar de uma situação de possível acordo. Tudo isso, que caracteriza a situação do pôr-se de acordo na conversação toma sua versão propriamente hermenêutica, onde se trata de compreender textos. Caso contrário, encontramo-nos diante de um tribunal. Vejamos então.
O instrumental sustentado nos conceitos de “jogos de linguagem”, “regras”, “significação”, “seguir regras”, “dar ordens”, “forma de vida” e tantos outros, sugerem possíveis aplicações no contexto da linguagem relativa à descrição das atividades sociais ou culturais constituindo-se primícias em relacionar a filosofia de Wittgenstein com as ciências sociais desde Peter Winch, Hanna Fenichel-Pitkin, Anthony Giddens, Derek Phillipe, para ficarmos nesses exemplos. Não estamos longe de admitir que o conceito “seguir regras” (ou, “dar ordens”) que é uma expressão verbal indicativa de uma realização onde há uma diferença entre crer que se está seguindo uma regra e estar de fato seguindo-a foi magistralmente utilizado por Hannah Arendt em seu Eichmann em Jerusalem. Um relato sobre a banalidade do mal (São Paulo: Companhia das Letras, 1999, edição original: Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil, 1963), posto que, o segredo, também estudado por Georg Simmel, tinha uma finalidade prática.
Conforme Arendt, aqueles que eram informados explicitamente da ordem do Füher não eram mais “portadores de ordens”, mas progrediam ao grau de “portadores de segredos” e tinham de fazer um juramento especial. Além disso, toda correspondência referente ao assunto [extermínio físico de judeus] ficava sujeita a rígidas “regras de linguagem”, e, exceto nos relatórios dos Einsatzgruppen, é raro encontrar documentos em que ocorram palavras ousadas como “extermínio”, “eliminação”, ou “assassinato”. Os codinomes prescritos para o assassinato eram “solução final”, “evacuação” (Aussiedlung), e “tratamento especial” (Sonderbehandlung); a deportação - a menos que envolvesse judeus enviados para Theresienstadt, o “gueto dos velhos” para judeus privilegiados, caso em que se usava “mudança de residência” - recebia os nomes de “reassentamento” (Umsiedlung) e “trabalho no Leste” (Arbeitseinsatz im Osten), sendo que “o uso destes últimos nomes prendia-se ao fato de os judeus serem de fato muitas vezes reassentados temporariamente em guetos, onde certa porcentagem deles era temporariamente usada para trabalhos forçados” (cf. Arendt, 1999:100).
Invariavelmente filmes como o dirigido por Stanley Kubrick, Laranja Mecânica, original, A Clockwork Orange, é um filme britânico de 1971, adaptação do romance homônimo de 1962 do escritor inglês Anthony Burgess. Ambientado numa Inglaterra “num futuro indeterminado”, o filme mostra a vida de um jovem, chamado Alexander DeLarge, cujos gostos variam de música clássica (Beethoven), a “estupro e ultraviolência”. Ele é o líder de uma gang de arruaceiros, aos quais se refere como “druguis” (palavra originária do russo Drug - Друг; amigo). Alex narra a maioria do filme em “Nadsat”, um “idioma que mistura o russo, o inglês e o cockney”, por exemplo, rozzer é polícia, drugo é amigo, chavalco é homem, moloko é leite. Alex é irreverente e abusa dos demais; mente para seus pais para faltar na escola.
Dirigido por François Truffaut em 1966, Fahrenheit 451 é a adaptação cinematográfica do romance homônimo de Ray Bradbury. Num “futuro hipotético”, os livros e toda forma de escrita são proibidos por um regime totalitário, sob o argumento de que fazem as pessoas infelizes e improdutivas. Se alguém é flagrado lendo é preso e “reeducado”. Se uma casa tem muitos livros e um vizinho denuncia, os “bombeiros” são chamados para incendiá-la. Montag é um desses bombeiros. Chamado para agir numa casa “condenada”, ele começa a furtar livros para ler. Seu comportamento começa a mudar, até que sua mulher, Linda, desconfia e o denuncia. Enquanto isso, ele mantém amizade com Clarisse, uma mulher que conhecera no metrô. Ela o incentiva e, quando ele começa a ser perseguido (e morto, segundo a versão televisiva oficial), ela o leva à terra dos homens-livro, uma comunidade formada por pessoas que memorizavam seus livros e também eram perseguidas. Essas pessoas decoravam os livros, para publicá-los quando não fossem mais proibidos, e os destruíam.
De Ingmar Bergman, O Ovo da Serpente (Das Schlangenei, EUA/ALE, 1978), na Berlim arrasada pela Primeira grande Guerra (1914-18), um desempregado consegue refúgio em um apartamento de um cientista, que também lhe oferece um emprego. Porém, aos poucos ele descobrirá uma terrível verdade naquele lugar, e que tudo isso tem a ver com o suicídio de seu irmão. Em verdade trata-se da “Berlim de novembro de 1923”. Abel Rosenberg (David Carradine) é um trapezista judeu desempregado, que descobriu recentemente que seu irmão, Max, se suicidou. Logo ele encontra Manuela (Liv Ullmann), sua cunhada. Juntos eles sobrevivem com dificuldade à violenta recessão econômica pela qual o país passa. Sem compreender as transformações políticas em andamento, “eles aceitam trabalhar em uma clínica clandestina que realiza experiências em seres humanos”.
O filme de István Szabó, Mephisto (idem, HUN/ALE/OST) adapta a história de Mefistófeles e Fausto ao contar a história de Hendrik Höfgen, que abandona sua consciência e continua a atuar e a se aproximar do Partido Nazista, mantendo assim seu emprego e ascendendo socialmente. Mephisto é a adaptação cinematográfica de 1981 do romance homônimo de Klaus Mann, dirigida por István Szabó e estrelada por Klaus Maria Brandauer, como Hendrik Höfgen. O filme foi representado pela coprodução entre companhias da Alemanha Ocidental, Hungria e Áustria. Muitos críticos percebem certos parentescos com a história de seu filme mais laureado Mephisto, que “narra a história real de um ator que se envolveu com o nazismo”. Porém Szabó nega ter se arrependido, alegando ter salvado a vida de um amigo condenado à morte, devido a seu envolvimento na revolução de 1956.
De Michael Mädchen, Uma Cidade sem Passado (Das Schrecckliche Mädchen, ALE, 1989) é um filme alemão lançado em 1990 e tem direção de Michael Verhoven. O filme, baseado em fatos reais conta a história da jovem estudante alemã Sonia Rosenberger (Lena Stolze), que após ganhar um concurso de redações recebe uma proposta para participar de uma nova competição e para isso, deve escolher entre duas temáticas: “Liberdade de expressão na Europa” ou “minha cidade natal durante o III Reich”. Estimulada pelas histórias que ouvia desde criança, Sonia decide mostrar como a cidade e principalmente a Igreja se mantiveram íntegras durante o período do III Reich.
Uma das características da produção são os depoimentos etnográficos dos personagens ao longo do filme. Cada um comenta sobre a pesquisa desenvolvida por Sonia o que dá ao filme uma característica de “filme documentário”. A própria Sonia é a narradora da história. Outra característica importante é o fato da primeira parte do filme, que mostra a infância e adolescência da protagonista ser em preto e branco e a segunda parte, o desenvolvimento da trama propriamente dita ser colorida. Essa característica é utilizada para chamar a atenção do espectador para a parte principal do filme, por isso as duas formas de exibição, uma um pouco monótona e outra mais chamativa.
E para sermos breves, a título de ilustração, de Steven Spielberg, A Lista de Schindler (Schindler´s List, EUA, 1993, CIC Vídeo, 195 min.), refletem tais questões ético-políticas. Os “campos de concentração” trazem em sua raiz à ideia de segregação e a semente que dá origem a “solução final” (Aussiedlung), quando se transformam (algumas dessas localidades) em campos de extermínio, com a introdução de câmaras de gás e fornos crematórios, como vimos na imagem fotográfica. Num dos guetos surge outro importante personagem, o administrador das empresas de Schindler, o sério e competente Stern (protagonizado pelo “oscarizado” Ben Kingsley, que já havia brilhado como Gandhi, em filme de sir Richard Attemborough) que serve de fio condutor da história da comunidade judaica com a qual Oskar Schindler irá se relacionar. Ele é o primeiro a ser salvo do extermínio nos campos nazistas.
Há no filme passagens que nos tocam profundamente, podemos ver a separação das famílias, os maus tratos com a vida dos prisioneiros pelos soldados e oficiais alemães, cenas de extermínio onde mulheres, crianças, doentes e idosos, vítimas preferenciais (já que não podem reproduzir o trabalho com o mesmo vigor e capacidade que os homens adultos) são assassinados a sangue frio enquanto, num paralelo, confrontando-se com a penúria e as dificuldades dos prisioneiros, os nazistas participam de festas, promovem suas invasões, apropriam-se de imóveis, lucram com o trabalho escravo nazista ou, o que pode ser considerado ainda mais grave, pouco parecem se importar com o resultado de ações tão grotescas, tão hediondas, tão desumanas. A insensibilidade e a insanidade coletivas dos adeptos de Hitler parecem caminhar lado a lado, os resultados todos hoje conhecemos.
É neste sentido que, no ano de 1963, Hannah Arendt escreveria Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil, a partir da cobertura jornalística que faria do julgamento do exterminador dos judeus e arquiteto da “Solução Final” para a The New Yorker. Nesta etnografia impressionante revela que o grande exterminador dos judeus não era um demônio e um poço de maldade (como o criam os ativistas judeus), mas alguém “terrível e horrivelmente normal”. Um “típico burocrata que se limitara a cumprir ordens, com zelo, sem capacidade de separar o bem do mal, ou de ter mesmo contrição” (cf. Boeno, 2010). Esta perspectiva valer-lhe-ia a crítica virulenta das organizações judaicas que a considerariam falsa e abjurariam a insinuação da cumplicidade dos próprios judeus na prática dos crimes de extermínio. Arendt apontara, apenas, para a complexidade da natureza humana, para certa Report on the Banality of Evil que surge quando se compadece com o sofrimento, a tortura e a própria prática do mal. Daí conclui que “é fundamental manter uma permanente vigilância para garantir a defesa e preservação da liberdade”.
Arendt regressaria depois à Alemanha e manteria contato com o seu antigo mentor Martin Heidegger, que se encontrava afastado do ensino, depois da libertação da Alemanha, dadas “as suas simpatias nazis” (cf. Farias, 1988), como é sabido. Envolver-se-ia, pessoalmente, na reabilitação do filósofo alemão, o que lhe valeria novas críticas das associações judaicas americanas. Do relacionamento secreto entre ambos ao longo de décadas (inclusive no exílio nos Estados Unidos) seria publicado um livro marcante, Correspondência 1925/1975, (“Lettres et autres documents”, 1925-1975, Hannah Arendt, Martin Heidegger), com edição alemã e tradução francesa da responsabilidade das Editions Gallimard. Hannah Arendt faleceu em 1975, e está sepultada em Bard College, Annandale-on-Hudson, Nova Iorque, EUA.
A recente formação do governo austríaco veio colocar com particular acuidade a questão da ascensão da extrema-direita na Europa, fenômeno tudo menos novo, que atingiu agora uma relevância particular. De França à Dinamarca, passando pela Itália, a subida crescente de partidos com uma plataforma política xenófoba e racista tem sido uma constante, sobretudo na última década. A subida ao poder na Áustria de um partido de extrema-direita, com uma plataforma política xenófoba, racista e nacionalista, torna urgente a reflexão sobre a democracia em cada um dos países, mas também sobre a dimensão europeia desta fenómeno político.
As plataformas políticas de todos os partidos de extrema-direita que têm alcançado sucesso nas urnas são extremamente parecidas. Populistas e xenófobos, estes partidos defendem fundamentalmente “a imposição de limites estritos à emigração e ao asilo, fazendo apelos populistas e nacionalistas à defesa dos interesses dos seus iguais, sejam eles definidos por nacionalidade, etnia ou pertença regional”. Por vezes procura-se justificar a ascensão destes partidos por razões estritamente econômicas, tais como: a globalização e as políticas ditas neoliberais geram desemprego e colocam em causa os sistemas de seguridade social. Se em situação de pleno emprego e satisfação social talvez fosse mais fácil controlar a ascensão de partidos xenófobos, o que os distingue verdadeiramente está sempre presente, com crise ou com prosperidade económica. Porque o que os distingue é o outro, a recusa do Outro, seja ele qual for. Se na França são os imigrantes magrebinos, na Áustria os da Europa central e de leste e dos Balcãs, se na Itália do norte são os italianos do sul, na Suíça, o Outro são os portugueses.
Enfim, vale lembrar que ao lado do recrudescimento do nacionalismo racista em países como França e Itália, essas manifestações, amplificadas, mormente por Angela Merkel, são perturbadoras - ainda mais se tivermos em mente o passado não muito longínquo, como vimos da Alemanha. Não queremos perder de vista que Angela Dorothea Merkel (Hamburgo, 17 de Julho de 1954) é uma cientista e, política alemã, desde 2005, sendo Chanceler da Alemanha e líder do partido União Democrata-Cristã (CDU) desde 2000. Foi considerada pela revista Forbes “como a mulher mais poderosa do mundo em 2009”. Além disso, a União Democrata-Cristã, em alemão, Christlich Demokratische Union Deutschlands - CDU é um partido político alemão de “ideologia conservadora e situado à direita no espectro político”. No land da Baviera a CDU não concorre às eleições, sendo ali representada por seu partido-irmão, a União Social-Cristã da Baviera (CSU). A coligação CDU/CSU é conhecida como “a União no Bundestag” que é o corpo legislativo da federação alemã - parlamento alemão -, estabelecido pela constituição alemã de 1949.


Bibliografia geral consultada:
FLICKINGER, Hans-Georg, Marx e Hegel: o porão de uma filosofia social. Porto Alegre: L&PM Editores; CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, 1986; BURNS, Edward McNall, História da Civilização Ocidental. 2ª edição. Porto Alegre: Editora Globo, 1967; DELEUZE, Gilles, Cinéma I: l` Image-Mouvement. Paris: Minuit, 1983; Idem, Cinéma II: l`Image-temps. Paris: Minuit, 1985; ETTINGER, Elzbieta, Hannah Arendt/Martin Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007; ARENDT, Hannah, L` Impérialisme. Les origines du totalitarisme. Paris: Éditions du Seuil, 1980; Idem, Origens do Totalitarismo. Anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, A Vida do Espírito: o Pensar, o Querer, o Julgar 1989; Idem, Entre o Passado e o Futuro. 3ª edição. São Paulo: Perspectiva, 1992; Idem, Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993, 2 vols; Idem, O Conceito de Amor em Santo Agostinho. Rio de Janeiro: Instituto Piaget, 1997; Idem, Eichmann em Jerualém. São Paulo: Cia das Letras, 1999; Idem, A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2001a; Idem, Correspondência 1925/1975. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001b; Idem, A Dignidade da Política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002; Idem, Responsibility and Judgement. Nova York: Schocken Books, 2003; Idem, Homens em Tempos Sombrios. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008a; Idem, Compreender. Formação, exílio e totalitarismo. Ensaios 1930-1954. São Paulo: Cia das Letras, 2008b; Idem, A promessa da política. 2ª edição. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009; Idem, & HEIDEGGER, Martin, Hannah Arendt e Martin Heidegger: Correspondência 1925-1975. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001; HEIDEGGER, Martin, Nietzsche. Berlim: Gunther Neske Verlag, 1961; em francês, traduzido por Pierre Klossowski. Paris: Gallimard, 1971; Idem, Ensaios e conferências. 3ª edição. Petrópolis (RJ): Vozes, 2006; Idem, Nietzsche (I). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007; BOENO, Maico Russiano de Souza, O Bur(r)ocrata, uma análise existencialista do pensamento de Hannah Arendt no caso Eichmann até a formação do Tribunal penal Internacional. Brasil: Publit, 2010; PASCAL, Blaise, Pensamentos/Blaise Pascal; introdução e notas de Ch.-M. des Granges. 2ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Os pensadores); SIMMEL, Georg, On Individuality and Social Forms. Chicago: University of Chicago Press, 1971; Idem, La Tragédie de la Culture. Paris: Petite Bibliothèque Rivages, 1988; FARIAS, Victor, Heidegger e o Nazismo. Moral e Política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; TOURAINE, Alain, Sociologie de l`action. Paris: Éditions du Seuil, 1965; CHOMSKY, Noam, USA: Mito, Realidad, Acracia. Barcelona: Editorial Ariel, 1978; ROUANET, Paulo Sergio, “A gramática do homicídio”. In: Comunicação 3. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 1971a; Idem, (org.), O Homem e o Discurso. A Arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, 1971b; Idem, A Razão Cativa. Um estudo freudiano da falsa consciência. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 1984; Idem, A Razão Cativa, as Ilusões da Consciência: de Platão a Freud. São Paulo: Brasiliense, 1985; Idem, “Do Pós-Moderno ao Neomoderno”. In: Rev. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 1986, n˚ 84, jan./mar. de 1986; Idem, As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987; Idem, Teoria Crítica e Psicanálise. 3ª edição. Rio de Janeiro: Revista Tempo Brasileiro, 1989; REIS FILHO, Daniel Aarão, Século XX. Volume II. O tempo das crises. Revolução fascismos e guerras. Civilização Brasileira, Rio de janeiro, 2005, pp. 56-57; BRAGA, Ubiracy de Souza, “Hillary Rodham: Dama de Ferro & Cia. No Mundo Globalizado”. Disponível em: http://secundo.wordpress.com/2010/07/23; Idem, “Corrupção: o crime (com) pensado no país do mensalão”? Disponível em: http://www.jornalgrandebahia.com.br/25/04/2011, Idem, “Prolegômenos sobre arte, técnica e cinema em Walter Benjamin”. Disponível em: http://espacoacademico.wordpress.com/2011/11/16, entre outros. 

3 comentários:

  1. Parabéns pelo trabalho!
    Faltou apenas uma boa revisão de texto.

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  2. Obrigado pelo comentário,vamos tratar de revisar os erros em breve.

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  3. Parabéns pelo excelente trabalho de pesquisa e pela profundidade das reflexões. Boeno.

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Obrigado pela sua observação ;)