Autor: Antonio Paulo Benatte (Professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa/UEPG)
É difícil entender o que se
passa no Brasil desde junho de 2013. Os acontecimentos políticos, grandes e
miúdos, multiplicaram-se desde então; protestos e movimentos sociais de
diversos tipos pipocam em todos os lugares, das classes médias urbanas aos
segmentos mais pobres, excluídos ou minoritários da sociedade. A tensão social no
ar é temperada com gás lacrimogêneo, spray de pimenta e coquetéis molotov.
A resposta do Estado tem
sido uma repressão brutal e crescente, cerceando o direito democrático de livre
associação, expressão e manifestação. Lembremos. No dia da comemoração dos 25
anos da “constituição cidadã” de 1988, cidadãos e professores em greve apanharam
publicamente na cidade do Rio de Janeiro; logo a seguir, o leilão do petróleo
do campo de Libra mobilizou contingentes do exército, da marinha, da Força
Nacional e da Polícia Militar, evidenciando que a política de repressão aos protestos
de rua partia não apenas de governos municipais e estaduais, como também do
governo federal. Desde então, a maré de movimentos e a sua repressão tem sido
constante e permanente, com fluxos e refluxos.
Quando começaram os
cassetetes, as balas de borracha, o spray de pimenta e o gás lacrimogênio, foi
como se ocorresse um curto circuito no tempo. Como se uma máquina do tempo nos levasse
aos anos 1980, ou mesmo aos anos da ditadura midiática-civil-militar de 64, à
ditadura varguista do Estado Novo, ou ainda aos começos da república, com seu positivismo
da “Ordem e progresso” a qualquer custo, da governabilidade truculenta, tempo
da Revolta da Vacina, do massacre de Canudos, Contestado, etc. A história se
repete, a diferença é apenas de grau.
Greves e ocupações são
reprimidas com violência em muitas partes. Ativistas e militantes são
vigiados e perseguidos, enquadrados por atos de vandalismo e formação de
quadrilha. Os casos de prisão, tortura e morte
desenham a face mais hedionda de uma série de acontecimentos que desmascaram a
falácia institucional do “Estado democrático de direito”. A violência,
evidentemente, é mais crua sobre os anônimos das periferias. Quantos Amarildos são presos, torturados e
assassinados nas periferias das cidades? No campo, líderes e sem terras são
assassinados por lutarem pela reforma agrária, prevista na constituição.
Comunidades indígenas veem-se ameaçadas em seus direitos de demarcação de
terras, também um direito constitucional.
Enquanto isso, um novo tipo
de espionagem estatal, sob os auspícios da ABIN (Agência Brasileira de
Informação), instaura veladamente uma vigilância sob as redes sociais. Sob a
alegação de espionagem internacional, o governo brasileiro deixará de utilizar
softwares cujos fabricantes não permitam monitorar os acessos à rede mundial de
computadores. E logo teremos um marco regulatório da internet, tão importante
na maré das manifestações de junho.
O caso das leis da Copa faz lembrar o ano de
1968, com a promulgação do AI-5 e a dura repressão que se lhe seguiu. Mais
longe ainda no tempo, os projetos de leis repressivas que tramitam no Senado evocam
a famigerada Lei de Segurança Nacional. Nos meados dos anos 1930, durante o
governo Vargas, a política de esquerda se fortaleceu; na contramão, o Congresso
se tornou cada vez mais conservador, debatendo o caso dos “subversivos” e
aprovando a Lei de Segurança Nacional que dava ao governo maior poder de ação
sobre as ações consideradas “subversivas”, principalmente a ação dos
comunistas. Com o medo da “ameaça vermelha”, o poderio do Executivo foi
aumentando gradativamente; em 1936, o estado de sítio declarado pelo poder
Executivo foi estendido; no mesmo ano, em novembro, foi aprovado o Tribunal de
Segurança Nacional, dando a Vargas um novo instrumento de perseguição e
repressão a qualquer movimento que fosse contrário às ideias e práticas de seu
governo. Ora, essa mesma lei, durante os “anos
de chumbo” que se seguiu ao golpe de Estado de 1964, foi empregada para caçar,
torturar e assassinar milhares de militantes.
Na história do Brasil, o militarismo, o
autoritarismo e o abuso de poder nunca deixaram de estar na ordem do dia. A
Polícia Militar aprende na mesma cartilha que formava as forças armadas da
ditadura. Quando enfrenta uma manifestação, eles entendem que o povo é inimigo.
Daí a demanda pela desmilitarização da polícia e da política; enquanto isso, a polícia
se torna cada vez mais uma polícia política, assim como na ditadura varguista e
na ditadura midiática-civil-militar a partir de 64.
Como nas duas últimas ditaduras, mais uma vez
o Estado tem a conivência e o apoio das grandes mídias, eficazes no processo de
criminalização dos movimentos, protestos e manifestações. Como dizem Michael
Hardt e Antonio Negri, as grandes mídias buscam nos conduzir “pelos regimes de
produção linguística e comunicativa: destruí-los com palavras é tão urgente
quanto fazê-lo com ações.” Daí que vejo com otimismo o crescimento de mídias
alternativas e a demanda pela democratização das grandes corporações
midiáticas, a começar pela Rede Globo – que, como se sabe e se grita nas ruas,
cresceu apoiando o governo dos militares. Como diria Maquiavel, “Governar é
fazer crer”. O Estado, mancomunado com as grandes mídias, quer fazer crer uma
série de coisas, inclusive que vivemos em uma democracia quando, de fato, vivemos
em uma ditadura que cerceia e reprime não apenas os movimentos sociais
organizados quanto os indivíduos, notadamente os mais pobres.
Em suma, entre as grandes questões de nosso
tempo está o recrudescimento da violência do Estado contra a sociedade; ou
melhor, contra determinados segmentos dela: os segmentos politicamente
dominados e economicamente explorados há séculos; os movimentos que lutam pela
conquista e manutenção de direitos básicos, sociais, políticos e civis.
A constituição de 1988 dispõe,
em seu artigo 5º, sobre os direitos e garantias fundamentais do indivíduo,
resguardando de forma taxativa os princípios cernes dos direitos civis e
políticos. Os direitos de primeira geração consistem nos direitos políticos e
civis. No âmbito político: direito a voto, participação política, direito a
associação. No âmbito civil: integridade física, direito de ir e vir.
Desse ponto de vista, a
ditadura no Brasil não acabou. Na história política recente não há verdadeira
solução de continuidade entre a última ditadura e a mais recente democracia.
Para além dos discursos, as práticas evidenciam a inexistência de rupturas
efetivas. O militarismo, o autoritarismo, o abuso de poder é uma estrutura de
longa duração, inerente a um estado histórico de coisas. Precisamos repensar e
reescrever totalmente a história do último meio século, ao mesmo tempo em que
lutamos contra todo tipo de autoritarismo no Estado como na sociedade. Penso
que essa é uma herança maior da maré de movimentos que arrebenta o país desde
julho de 2013.
Nas ruas somos como um enxame dispersado com
violência e fumaça. Mas os enxames não são dóceis; possuem os ferrões do calor
de vários corpos, inúmeras potências e vontade de ação. O Estado, as instituições
e as corporações já se deram conta disso; daí a necessidade dos gritos de não
violência e a insaciável busca por uma docilidade dos manifestantes. O silêncio
e a inação nos fazem dóceis, domesticados; perpetuam a conivência e o
acomodamento. Constituímos uma multidão; o participante político do século XXI
vive em meio ao solapamento das representações. Dessa forma, nosso papel deve
ser de atividade constituinte e não representativa; “a criação da história é,
nesse sentido, a construção da vida da multidão”, conforme Hardt e Negri.
À violência e ao policiamento do cotidiano,
sintetizados na prática do controle, há que se responder com um mesmo
potencial, de uma ruptura produtora de descontinuidades e da tentativa de
sinalizar o inesperado, o atual, o que ainda não existe e que só pode ser
parido pela história ao mesmo tempo individual e coletiva. Essas potências são
múltiplas e construídas na nervura do atual, que passam do virtual para o
possível dos desejos, dos afetos, das forças e das novas formas de articular a
vida de todos os dias.